sexta-feira, 3 de outubro de 2014

BUSTOS E AMAS

No parlamento há uma exposição de bustos de Presidentes da República – e estarão lá todos, mesmo aqueles que não foram Presidentes de uma República, menos ainda de uma República Democrática. Estranha-se aqui que as presidências não se prolonguem em dinastias e não estejam os reis todos até ao primeiro, o do montante, Henrique, o primeiro Afonso, já que tivemos reis que como presidentes foram mais presidentes que outros que foram presidentes e que foram mais monarcas na versão hodierna, puro corta-fitismo e nem vale falar do Presidente-rei.
Nesta altura do campeonato da crise vale tudo para mascarar o nosso real de uma normalidade que todos os dias estoira pelas costuras, seja pelos eventos-notícia escandalosos das Tecnoformas e de outros casos que hão-de vir (estão todos a ser agora destapados por quem tendo lá posto esta gente entende agora que este governo já não serve) seja por fait-divers tão curiosos como a exposição dos bustos ou a grande medida em relação às amas – se forem as do Cardeal atenção à qualidade do leite, essa deveria aliás ser a tese de licenciatura politécnica das amas em geral.
A crise, sendo a mesma em fase mais crítica, já que nada está resolvido, nem na dívida em si nem na recuperação económica/crescimento – para usar a bitola explicativa hegemonicamente corrente – pôs-nos agora a aceder ao mercado no mesmo ponto que nos levou à crise – o mesmo, mas piorado - e forma com a resposta à crise, o círculo vicioso perfeito, a pescadinha exitosa de rabo na boca: a quadratura do círculo da estratégia da sua superação é um must de visão passos-portista gasparómana, estaremos sempre a superá-la, à crise, sem nunca a superar, à crise, o impasse é perfeito. Temos uma vocação circular e não se pense que as práticas, não as do eterno retorno mas as do retorno cíclico, não espelhem bem a casta dirigente nestas décadas de democracia – governam entre o parasitismo local de autogoverno próprio e o deslumbre europeu para consumo interno, adoram ver-se sentados no Conselho ou fazendo selfies com Merkels e outros grandes líderes. Somos Europa para uns tantos que lá fazem as figuras tristes do pedinte ou a do vendido e esse lá é cada vez mais distante mesmo que a globalização seja cada vez mais instante.
Esta do busto só dá para chorar-rir. E conseguem o que querem, carnavalizar o real com a mediocridade requentada das iniciativas criativas que têm, agem enquanto poder como uma máquina constante de produção de ruído. A campanha alegre é diária, é o reverso da depressão, também diária – não é pessimismo, nem masoquismo, é consumo real de antidepressivos e ansiolíticos, vencedores do Guinness em estatística comprovada pela Infarmed, aliás. Quanto mais deprimidos mais vítimas de um sistema de graçolas ambiente que toma por leve o que pesa tragicamente, põem chantili na ferida com a mesma facilidade que despacham a avó para o quarto dos fundos. 
E as estatísticas já não são o que eram. Nos anos de Troica todos os dias éramos massacrados com números, agora os números estão numa segunda linha, já não protagonizam tanto aquela condição científica de selarem uma espécie de verdade irrenunciável todos os dias atirada para cima da nossa cegueira progressiva – há limites de resistência ao estereótipo obcecadamente metralhado, agressor. Não há pior demagogia que a dos números, os que encobrem o desemprego, os que mentem sobre o crescimento, os que escondem a realidade integrada da sua verdade, a única que seria autêntica sendo que, de científico no sentido de segurarem uma prospectiva concreta, os números nada têm. E quando mentem são brutais, indiferentes, são outros números por detrás dos primeiros. O discurso dos números é o pior dos discursos e o mais filho-de-puta, para citar o Alberto Pimenta, literatura portanto. 

Eu gostaria de uma exposição de bustos da república no Parlamento, isso abanava a modorra pasmada e pós dolorida - a da dor feita hábito - em que andamos. Segundo dizem, para além do disparate político, depois da estátua do Carmona nas Caldas, originalidade que abriu caminho a este rectaguardismo para lamentar no caminho do glorioso arcaísmo fascizante [falta uma expo dos mapas do império com a Angola nossa, etc.], as estátuas não são parecidas sequer com os bustificados, são mais feias que os modelos ou não acertam, trocam os bigodes, as papadas não são as do legítimo proprietário. É assim, vivemos de simulacros. Mas se fossem repúblicas, senhoras meninas como deusas com a bandeira a cobrir os peitos, pelo menos podíamos alegrar-nos com o que o símbolo comporta ainda de porvir.   

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Não é a economia estúpido

Num país que constrói edifícios notáveis que são equipamentos culturais de última geração como o CCB – Centro Cultural de Belém, repito, Centro, Cultural e em Belém (uma certa Lisboa junto ao Tejo), uma certa  memória da arquitectura militar a sinalizar o império - e a Casa da Música, magnífica forma hexagonal aterrada num coração moderno do Porto e permanentemente pronta para voar com o seu interior, em que existem edifícios recentíssimos também apetrechados com as últimas tecnologias da cena em Vila Real, Guimarães, Braga, na Guarda, em Ílhavo, nas Caldas, em Faro e em inúmeras outras cidades, construídos com as avalanchas de euros dos fundos comunitários, em que já existiam teatros como o Garcia de Resende, o São Carlos, o Dona Maria, o Teatro da Trindade, o Sá de Miranda, o Bernardim Ribeiro, o Teatro Viriato, etc., e outros de outras tipologias como o TAGV ou o Teatro Virgínia, o Pax Júlia, e muitos outros ainda do mesmo tipo de escola arquitectónica dos cineteatros, não existe uma verdadeira política cultural que os torne, extraordinários equipamentos também – não falemos dos inúmeros teatros desaparecidos, como o Teatro do Ginásio, mas falemos, por exemplo, do reaparecimento do Teatro das Laranjeiras (mais um sem programa, adaptado a fins inadequados) -, instrumentos de uma identidade cultural contemporânea artística verdadeiramente europeia e portuguesa, esteticamente plural, aberta aos mundos e por assim dizer lugar de um exercício constante dessas práticas que podem constituir, substanciando-o, um quotidiano em que essa identidade plural se teça e reteça criticamente.  
Uma política cultural é uma política de abertura à consciência do gosto, uma política do desenvolvimento de uma cultura das possibilidades do gosto assente numa dimensão sensível e cognitiva. Na realidade uma política cultural estará para o gosto como os fertilizantes naturais, a qualidade da terra e ará-la, estarão para o que vai florescer e criar-se, para o que se prevê e para o que se experimenta, do conhecido ao enxertado, da monocasta rigorosa ao lote tentado, para falar metaforicamente de um exemplo de êxito no nosso país. Não ignoro, no entanto, que no caso das práticas artísticas, esse amadurecimento que na natureza tem as suas invisibilidades, necessita de cuidar das suas etapas de uma forma particularmente protegida das contaminações do ruído  de um dia a dia espectacularizado-mecânico, de rotinas esmagadoras puramente operacionais ou mesmo absurdas – um caos acéfalo é próprio do trânsito nas metrópoles ou das horas de ponta do turismo de massas num mesmo espaço de atracção - para se efectivar num plano artístico. 
Já não há natureza natural e aquela que é cultural, num sentido fértil, não é propriamente uma ilha que se possa frequentar isoladamente, como uma espécie de concentração convergente dos factores ideais de criação enquanto meio ambiente, habitat cultural de estimulo e propulsão do que é vital contra o que são as rotinas e formas de consumo impostas mais que propriamente desejadas enquanto horizonte de invenção – os objectos do lúdico como primeiro alfabeto de interacções com o exterior atravessam-se no caminho de todos desde a nascença sob a forma de mercadorias e têm o seu poder de sedução organizado como marketing. Isso verifica-se na indústria dos brinquedos, que organiza reproduções em miniatura dos objectos da vida adulta mimetizando-a e torna o prazer que uma criança encontra em brincar com uma tampa ou com um bocado de papel amalgamado um estranho fenómeno. A criança nasce hoje para ser  imediatamente “agarrada” pelas formas que o mercado duplica do real penetrando todos os nichos vitais, para ser alguém que inicia uma biografia de consumidor, melhor, uma não história. Aquele que constrói qualquer coisa que não lhe preexiste e que pela invenção formal e substantiva preenche um entendimento do mundo, tem nesse marco o sinal de um percurso, o outro apenas sabe que, com a pilha metida, a luz se acende e a coisa apita, seja como automóvel, como comboio, o que for. Neste aspecto a sofisticada falta de imaginação do mercado consegue produzir objectos tão hiper-reais que há bonecos imitando humanos que falam e são feitos de um silicone que se confunde coma carne humana. Aqui o culto da des-imaginação, a sua negação, atinge um cume. Quem faz na vida um percurso de do fazer, o que seja, “experimentando” o que for de um todo de “tudo já feito”, nada aprende e nada inventa, conforma-se para a formatação desde cedo, desenvolve um sistema de reacções mais próximo da criatura de Pavlov que de um sujeito criativo. Não foi acaso a relação de sedução dos cubistas pelas formas artísticas “primitivas” da arte africana, o que se vê bem nas criações de Picasso. Essas formas, por muito figurativas que sejam, têm uma liberdade formal que o mimetismo desconhece e mergulham numa memória antropológica que nelas faz transbordar o fundo mítico para quem nelas tenta ler sinais do mundo. O mesmo acontece com as gravuras primitivas, com as figurações animais verdadeiramente voadoras e organizadas para ângulos inesperados, com formas que desenhavam em si mesmas admiração ou medo e simultaneamente tentativas de celebração ritual que antecipassem uma ocorrência real por vir.     
Entre a abertura ao mundo, para que ele seja conhecível e apreendido, também criação, pura inexistência a encontrar processualmente, por saltos de maturação e autoconsciência do que na forma toma forma, a sua estrutura, invenção e a resistência às formas que o traduzam mercantilizado, num assédio constante ao incauto consumidor, obviamente ideológico, há que encontrar as metodologias, e os espaço vitais, que permitam o acesso a estádios criativos de fazer e de fruir – são princípio constitucionais. Aliás, quem faz frui e quem frui pode vir a fazer, essa é a verdadeira dinâmica entre criação e recepção, pois nenhuma destas actividades existe para si mesma, só existindo na sua interacção com a outra. Muitos autores falam de como escrevem o que leem numa espécie de plágio criativo, palimpsesto, apropriação íntima de algo que sendo de outro é de todos no espaço público, objecto de apropriação – a apropriação pode ser, aquela que faça um uso da mercadoria deslocado e inadequado ao para que é o objecto, uma apropriação criativa. Muitas vezes pode ser na recepção que o gesto criativo emirja. Neste caso numa acepção abrangente do que seja ler, já que ler a realidade mais que pertencer-lhe como o peixe à água, também é uma arte, além de que as escritas são fenómenos, isto é, acontecimentos, movimento. Lê-la, à realidade, transfigurá-la e não apenas desmontá-la, a que nos surge mais visível e legível – como sabemos, o real não se dá a ler em estado puro e as suas mediações são já, em si, leituras com pensamento orientado. Ler o real é obviamente um enorme esforço de abstracção, já que é necessário imaginá-lo nesse plano, a partir justamente do que que se apresenta como aquilo que é e é expressão do concreto. Trata-se de ler a partir de uma ordenação da desordem aparente, a partir do exercício da descoberta, de desvelamento, da sua estrutura encoberta e da multiplicidade infinita dos fenómenos. A arte tanto se foca nesse esforço de abstracção que nos remete para uma totalidade imaginada que se revela desencobrindo-a – como numa escavação arqueológica, em que ás camadas correspondem idades - como se apresenta como um dos seus desvios mais particularizados ou singulares, esforço de afirmação de um timbre num oceano sonoro em que impera o ruído.            
A ausência de uma política cultural é, por omissão da função democrática implícita no projecto cultural constitucionalizado, uma política do gosto entregue ao mercado e às suas formas e linguagens sempre publicitárias e para-publicitárias, às suas glosas pseudoartísticas para lá do ecrã, territórios do real dito real a contaminar com a teledependência, – como se sabe, a partir de uma porno-chachada televisiva, há uma multiplicação nos exteriores dos efeitos xamânicos televisivos, uma digressão de preços certos a cumprir com o acordo, cumplicidade contaminante e poluidora, de autarcas, “programadores” e lugares de programação que, deveriam ser serviço público artístico e não comércio tóxico do que é indigente enquanto forma e mente, na medida em que são dinheiros dos contribuintes europeus que visam a construção da “Europa” – já no antigamente as companhias teatrais faziam primeiro Lisboa e depois, de modo adaptado a um nivelamento para baixo das coisas do gosto e económico, faziam a província, tradição aliás que remonta ao século XVIII e que numa estrutura semelhante já acontecia quando a coisa se passava entre uma grande capital europeia e Lisboa. Ao São Carlos vinham os Goldonis adaptados ao gosto português, desprovidos de exigências que o público veneziano não dispensava.              . 
O CCB não é um investimento dos Dinheiros Europeus que vise actividades lucrativas, visará, isso sim, uma actividade não lucrativa, justamente cultural, obviamente sustentável economicamente, o que é outro problema, mas um problema essencialmente ligado aos destinatários por um lado e à criação artística estruturada regularmente, por outro – deste ponto de vista quem seriam os contribuintes que não desejariam saber que o seu dinheiro se converte em  fruição para as crianças via escola, em colecções de arte ou na existência de uma orquestra ampla? Pelo mesmo tipo de razões não faz sentido fazer uma discoteca, lucrativíssima, na Torre de Belém, nem um circuito de comboio fantasma entre os manuscritos da Torre do Tombo. 
Mas há aqui um segundo sentido que não nos deve escapar: se a Europa é constituída por matrizes comuns, a cultura grega e o cristianismo, e se a Europa é a assunção dos ideais democráticos da revolução francesa e se a Europa é também a rejeição do totalitarismo nazi e das duas guerras mundiais do século XX, será compreensível que aquilo que é o seu comum assente nessas premissas. Essa constituição da Europa, na base destes alicerces referenciais, só pode aperfeiçoar-se pelas mesmas vias culturais e valorativas, também económicas por consequência mas não por determinação prévia lucrativas – a economia é também uma arte do equilíbrio, um governo da casa é o seu sentido primeiro. A Europa dos bancos e das finanças é obviamente americana e anglo-saxónica. Já Marx chamava a atenção para as três fontes do marxismo: a política francesa, a economia inglesa e a filosofia alemã. A articulação destas três vertentes do saber é necessariamente cultural, a filosofia pode explicitá-lo. Mas uma relação equilibrada humanamente pensada, socialmente, não subalterniza a arte e a cultura a qualquer estratégia do que se diz economia. Não há objectivos económicos que não sejam instrumento. As consequências culturais de uma determinação do cultural por um primado absoluto do lucro, ou de rendibilidades inadequadas à natureza deste ou daquele objecto/processo artístico e cultural, são a barbárie, a redução forçada do que é artístico a uma lógica mercadificada, alterando-lhe a natureza e contaminando-lhe os processos de criação e divulgação pelos que no mercado as chamadas marcas praticam. É, de facto, possível desvirtuar um Shakespeare que se realize ao ponto de, usurpando-lhe o que no nome seja o que é de complexo e sublime, se converta Shakespeare numa marca, como Nestlé ou BES. Neste caso a celebridade do autor enquanto nome converte-o em algo que se pode nivelar num mesmo plano com outros produtos, sejam quais forem, sapatos ou preservativos – cada marca, ou cada produto, para existir, para se tornar visibilizado, necessita absolutamente de uma qualquer narrativa, seja a ideia que o chocolate NESTLÉ faz sonhar com paisagens em que orangotangos falam com uma luz negra, seja a de que uns dados sapatos nos fazem sentir tão confortáveis que nos emagrecem. A publicidade vende mentiras e é feita de todas as formas de sedução qua à libido comovem, um Shakespeare assim promovido pode reduzir-se de facto a uma ideia publicitária: “é Shakespeare é gobal, é vital, e faz bem a tudo o que faz mal”, ou coisa no género.          
Uma não política cultural é o contrário de uma política cultural, é a cedência total ao mercado do espaço público que um regime democrático baseado na legitimidade eleitoral deveria construir e dar a fruir como finalidade de regime – nem os mercados, nem o financismo, se confrontam com o voto popular, mesmo que os seus delegados o façam, não em seu nome, mas com máscaras ideológicas do tipo igualitário, o que é outra coisa. Não há força política que rejeite a igualdade e um dos tópicos comuns do discurso dos partidos é a postura, como dizem, antielitista, particularmente em matéria cultural, tida a cultura artística como um luxo desnecessário, desprezando um dos axiomas mais evidentes de qualquer processo de democratização: só pela via de uma política que se proponha não simétrica, que privilegie uns em detrimento de outros, que parta para a correcção das estruturação revolucionada das desigualdades, se podem introduzir formas de produção cidadã de novos equilíbrios de tendência igualitária, o que não é só a correcção de assimetrias mas, mais que isso, a criação de potências de identidade diversa em diálogo e confronto críticos, consoante as suas geografias e demografias, urbanismo e desenvolvimento de estruturas sociais que se equilibrem a partir de forças com a mesma potência, como poderá ser, por exemplo, a relação das periferias com o centro, das regiões interiores com o litoral, do país com Lisboa. Não faz sentido séculos depois que a frase “Lisboa é a capital e o resto é paisagem” tenha reganho o seu sentido original e Lisboa seja de novo a capital de um centralismo extremado. Uma das pechas da questão cultural é o seu tratamento não autónomo, de coisa em si. Uma política cultural tem de ser uma política das regiões, das autarquias e do Estado. Para isso era possível uma política de regionalização específica que poderia, aliás, abrir portas às outras. 
Uma política cultural democrática, a que dá a viver uma cultura democrática “elitista para todos”, nivelada por cima mas generalizável, só pode ser justamente isso, uma política de correcção das assimetrias e desigualdades estruturadas pelo mercado selvagem em que vivemos e pela política selvagem que o serve – a governação mais recente tem aliás os seus modelos na ideia de que o governo é um Conselho de Administração e o país uma empresa – não pode existir ideia mais tacanha e mentirosa, não só a memória identitária é destruída por um simples gesto em nome de um futuro paraíso económico só universo de consumo, um mundo/consumo, uma pátria/consumo, como a simplificação do que faz a realidade de um país é convertida num problema de gestão, confundindo governo com gestão, o que nada tem a ver, um tem horizontes históricos, outro, operacionais. 
Dir-se-ia que são dois tipos de vidas, a do mercado e a de um sector público de iniciativa democrática, que se estruturam contraditoriamente e que têm alguns canais de interpenetração, que mantêm entre si um saudável combate nos pontos de contaco, um ágon. Há, no mercado, mecanismos de expansão que são positivos e só os modos de criação públicos se libertam da necessidade de ir ao encontro do gosto vulgar – em que a subjectividade e o íntimo são ilusões publicitárias, formas da consciência vulgar falsas, igualitaristas para produzirem um mesmo que se reproduz até ao infinito, sonhos de “escravo” a ver-se ao espelho um outro que nunca é. O que é específico de um trajecto cultural craivo, também processualmente da divulgação do que se faz, fundamenta-se na perspectiva de encontrar formas de socialização específicas que não necessitem de aval nenhum de audiências (das audiências) outro cliché absoluto. 
Em boa verdade muitos são os exemplos de primeiras criações que esbarraram nos critérios do mercado, aliados a conservadorismos epocais, a começar por Joyce. Mesmo Beckett faz ironia sobre as vendas da sua primeira obra, meia dúzia de exemplares vendidos, um verdadeiro insucesso. Certamente que a obra beneficiou de outros circuitos de afirmação e de outros modos de reconhecimento impulsionadores. 
Só com a relevância de uma verdadeira inscrição orçamental, digna desse nome e com a possibilidade de operacionalizar uma política no âmbito de um Ministério, tal desígnio é possível. Neste preciso momento a vida cultural e criativa portuguesa está entregue às “programações” de objectos vulgares, porno-chachadas, espectáculos para-publicitários e para-artísticos, que resultam de uma verdadeira desqualificação e destruição do que culturalmente se vinha definindo – a possibilidade que Abril abriu - como de interesse cultural e artístico. Obviamente que as excepções existem e não fazem a regra, como serão os casos da Casa da Música e do Teatro Nacional de São João, estruturas resistentes que continuam a fazer um trabalho notável.
O espaço sensível de inscrição do gosto debate-se com a presença disseminada e massiva do mau gosto e do mimético reprodutível. O gosto, a disponibilidade de cada um para as questões do gosto, a nova sensibilidade que a subjectivação forma formando a nossa sensibilidade imediata, é o resultado da formatação feita pelos poderes mediáticos omnipresentes que, sem contraditório estruturado pela democracia, desde cedo e violentamente o mercado e suas expressões mediatizadas conforma – o conformismo estético, disfarçado hoje de todos os “vanguardismos” descartáveis, é o resultado de uma profunda e totalitária mercadificação e mercantilização das esferas do gosto e do espírito. Este destino que passa sempre pela mercadoria ignora que muitas formas artísticas não são mercadorias dado que a sua imperfeição é a sua própria matriz artística, como será o caso da interpretação de uma dada partitura de Mozart, sempre variavelmente imperfeita, como será o caso de uma criação absoluta e única, concebida para um momento único, ou que encontre condições únicas de exercício à margem de uma determinação de mercado – este impõe um standard e fala sempre da relação preço qualidade, coisa que um objecto artístico, em absoluto, desconhece. Não será o valor de mercado das Tentações de Santo Antão que constitui a qualidade artística e narrativa da obra, mesmo que tenha um dado valor de mercado – isso vale o que valem as acções da bolsa e é tomar a coisa pelo valor monetário e não pelo que é. Não se lê, lendo o que vale monetariamente, embora isso lhe confira um estatuto de bem capitalizável, de valor dinheiro, de equivalente monetário. Na arte, por exemplo, no teatro, é a singularidade de cada representação, na presença de espectadores sempre outros e de uma disponibilidade subjectiva-colectiva também outra da equipa de criação, que faz a experiência artística singular, ao ponto de que os espectadores, fruindo o mesmo objecto em noites diferentes, falem de objectos diferentes. Há mesmo um clique em certas noites, chamemos-lhe conjugação de factores imperceptível ou mesmo lua cheia, que tornam essa experiência possivelmente única – noutras noites a mecânica de cena vence, vencem os factores mais parecidos com a sua engrenagem repetitiva, com o que tenha de “indústria”, fábrica.  
O gosto formata-se antes de encontrar qualquer possibilidade de se alimentar alternativamente – o mercado não forma, formata um gosto imediato sob a forma de modas e narrativas publicitárias, imagens dominantes e recorrentes, ídolos e “mitologias fabricadas ao momento” e de atracção imediata – o objeco vive da imediatidade da força atractiva e da velocidade, quanto mais rápidas as formas do consumo mais objectos se consumem no tempo disponível e mais o tempo disponível é um tempo totalmente pleno de actos de consumo (em casa, diante da televisão e no que supostamente será um universo íntimo o consumo está constantemente a atacar via televisiva. 
O objectivo do mercado não é libertar a experiência sensível das suas próprias limitações intelectuais e sensíveis, não é o autoconhecimento sensível mas a dependência da marca, o controlo do desejo dos sujeitos, a indução no sujeito de um desejo inculcado e artificial, baseado no seu desconhecimento dos mundos do gosto e das suas linguagens – o que não tem a ver, no plano alternativo de uma política pública que lhe faça frente, com o culto idolátrico por um ou outro autor em particular, mas com um universo vasto, histórico e actual – sem obsessões actualistas - de múltiplas “fábricas sensíveis” criativas, interligadas e culturalmente diversas, que “conteudifiquem” e substanciem a democracia como democracia cultural também, tal como deve acontecer na saúde, na educação, na habitação, na alimentação, etc. 
Esse acesso de todos ao património de todos, clássicos porque contemporâneos e contemporâneos porque potencialmente clássicos ou porque experiência formais relevantes, por dentro das culturas europeias mas também os universos de outras culturas, sejam de matriz popular, sejam de étnica universalidade como as poéticas de vida da cultura índia, sejam forma híbridas e interculturais não comerciais, nem turísticas, nem para-publicitárias, corresponde necessariamente à estruturação de aprendizagens dessas linguagens a que podemos aceder como acedemos, por via primeira da língua materna à própria língua – no caso, também é a organização da sociedade que o concretiza, para além do meio familiar, determinante. Se a língua fosse apenas negócio ela não necessitaria da complexidade que a torna mundo de mundos e faz dela o veículo e ao mesmo tempo o território que abre as portas de todos os outros.  
Essas aprendizagens, não academizadas nem escolarizadas apenas, mas experimentadas desde cedo, são hoje possíveis pois o tempo histórico, o seu fundo globalizado vivo e activo, hoje permite, ao abrir a todos essa possibilidade – ela está aí - de uma nova dimensão existente do real que seja esse exercício de uma subjectivação que faz de cada espectador um autor potencial. Essa possibilidade só existe se for inscrita democraticamente. Para isso os Estados reconhecem como necessidade de conteúdo democrático dos regimes, mesmo não o praticando de modo perfeito, à cultura e à diversidade das formas culturais e artísticas, uma função que seja estruturada socialmente como potencialidade, das sensibilidades de cada um, das visões dos reais, dessa acção/fruição/conhecimentos/práticas sensíveis /pensamento /sentido, que constituem a substância simbólica possível e os conteúdos da própria liberdade qualificada e concreta.
O mercado corre atrás do analfabetismo, da iliteracia, da generalização do primarismo concursómano e do culto do vazio que resultam do imediatismo das suas estratégias de venda, vazio criado artificialmente para converter – fidelizar como dizem de modo para-religioso e indutor de uma dependência mundana - os consumidores disponíveis para que o mercado preencha o que artificialmente induz como desejo próprio do sujeito consumidor a ser preenchido com o seu tipo de ofertas – palavra tão reveladora quanto a fidelização, na medida em que uma linguagem, necessariamente complexa como uma qualquer língua, não se pode oferecer como complexidade, não é de consumo imediato e fruir é o contrário de consumir, exige um tempo não pagável, pura perda, time is not money – quem é que numa noite de amor põe a funcionar aquela máquina de medir a relação preço/qualidade da experiência sensível? A oferta e a multiplicação da oferta vive de uma lógica de concorrência que invocando a diversidade oferta o mesmo. Neste aspecto as programações idênticas, quase copiadas, em horários, publicidades e programas, das estações televisivas mostram bem como, em nome da diversidade, se oferece um mesmo que é cada vez mais o mesmo. Neste caso a concorrência mata o diverso. Este, na realidade, é diverso porque as condições da sua afirmação expressiva e a sua memória propulsora é outra. Só o outro não concorrente pode gerar o diverso e oferecer o que não é o mesmo. O espaço do diverso no mercado é etiquetado e funciona por gavetas. Nelas abundam os clichês. Já houve tempo, nos seus primórdios, em que o mercado, ainda não constituído como realidade totalitária e forma de poder omnipresente: será exemplo disso a obra dos Beatles, cuja sofisticação formal e abertura a outras culturas, mesmo que já num registo massivo, seria de todo impossível nas condições da industria e do consumo hoje.    
Há que, no entanto, referir algo decisivo: o desejo do consumidor não se forma apenas pela inculcação da marca como desejo, pelo fetichismo da mercadoria que a sacraliza e torna inalcançável e portanto desejada ( as sapatilhas para os adolescentes são mais que asas quando estão presos nessa teia como moscas ansiosas, como os automóveis um pouco depois), forma-se também nesse entendimento de que todas as relações são agidas por um princípio mercantilizado, determinadas pela troca e pelo valor do que é humano pesado em troca. Na peça de Koltès, Na solidão dos campos de algodão, não só a relação entre as duas personagens é nomeada como entre O Cliente e O Dealer, como a transacção humana a efectuar, que corresponde do lado do Cliente a um desejo profundo de satisfação de necessidades que radicam numa mistura de solidão angustiada e desejo de sair dela, de liberdade e dependência, são balanceadas em termos dialogados através de uma linguagem verdadeiramente traficada a que Koltès dá uma densidade profundamente humana e poética através de longas formas monologadas contrapostas.   
Com as suas modalidades de “cheio”, constituído pelo fluxo de imagens e preconceito constantemente produzidos/emitidos em múltiplos suportes de produção imagética interconectados por um mesmo deus publicitário omnipresente, sem pausa de recuo para quem os sofre, no lugar da possibilidade da aprendizagem do sensível e das práticas do pensamento, o mercado, as formas de mediatização das suas linguagens dominantes, ocupa a sociedade, coloniza-a constantemente como poder imperial que é – o mercado é a forma desse império na estruturação determinada pela economia, das sociedades. 
O pensamento vazio decorre justamente da condição descartável e apenas performativo-publicitária do falso artístico e do preconceito socioideológico – venda permanente de modelos de vida -, sempre a emergir do lado do mercado permanente obcecado com a inovação das aparências e sempre apoiado do lado dos poderes submetidos ao poder do financismo banqueiro que tudo penetrou com as políticas do crédito, fingidos modos de acesso ao que, na realidade, excluem: a verdadeira experiência cultural, a de um novo autoconhecimento de cada um, a possibilidade de numa sociedade estruturar modos de socialização não mercantilizados e verdadeiramente novo-comunitários, libertadores. Os créditos vendem esses modelos de vida referidos, vidas de uma a cinco estrelas, abaixo dos quais está agora a maioria da população e vendem-nos como prisões douradas, tornando as pessoas reféns de ideias que no fundo têm a forma da dívida como modelo de vida. 
As dimensões do que é cultural são identitárias, são linguagens criativas, inesperadas e emergindo, são linguagens e obras que não terminam de dizer o que dizem porque sempre lidas de formas diferentes em cada novo tempo, são o universo interminável e sempre em modificação da língua e das imagens escritas, mas são também esses outros parâmetros que as origens de cada um determina, as tradições populares, as da própria arquitectura popular, por exemplo, extraordinária e tão desprezada entre nós, mas também, e novo exemplo, os materiais textuais dos Bonecos de Santo Aleixo – que roça muitas vezes o melhor Vicente e são obra de um tempo a caminho de um século, corporizado pelos seus manipuladores-autores.
Uma política do mau gosto é portanto dominante porque o mercado é dominante – nada mais evidente do que as novelas como subprodutos/linguagens impostas desse mau gosto, na medida em que apreendem e vendem um real modelado por objectivos primários, alimentando um tipo de vida vulgar e psicologizando de modo intrigalhado a vida de uma classe média epígono de um vazio que multiplica traições, beijos plastificados, muita pintura entre olhos e bíceps, deixas fora de tempo, um universo doméstico integralmente idêntico ao do lado, pessoas feitas apenas de uma contradição principal e primeiros planos a estoirar de cor em cima da nossa condição indefesa – as tretas da interactividade cidadã à mão e descartável, zapingómana, são um conto para ingénuos na perspectiva interactiva: não há interactividade de um polo só e imposta como o jogo de um que manda. Todos sabemos que os diálogos socráticos são um extenso monólogo, para usar um exemplo pela distância. O interactivo salivar ou aplaudidor faz das criaturas animais tão inteligentes quanto os humanos e fundos de tela. Não é por acaso que há, cada vez mais, esta aproximação dos animais à inteligência humana através de todo o tipo de programas – e eles serão mesmo capazes do incrível, como um cão que dança com o dono ao ponto de não sabermos quem é o cão e quem é o dono – o que, na realidade, tenta provar que qualquer dia seremos como os golfinhos e estes como os lá de casa ao mesmo tempo que na palestina, as crianças, nem animais de estimação merecem ser.    
Nunca essa dimensão tóxica do real foi tão clara e totalitária em resultado de uma ausência da política cultural do Estado Democrático e que se traduziria no acesso à criação e fruição culturais, correcção pública das disfunções estruturantes do sistema da desigualdade do mercado como se disse. Esse acesso relaciona-se, insisto, com a criação contemporânea, com o que se experimenta e tenta como novo relativamente ao que o real vem impondo como “novo”, com o acesso aos clássicos, à nossa identidade profunda plasmada na variedade dos patrimónios culturais, ao que poderíamos caracterizar como artes da palavra, do som e da imagem, e à memória patrimonial em sentido estrito e também amplo, europeu e universal, sejam as escritas de uma pré-história anterior à identidade linguística, sejam os documentos da Torre do Tombo. O próprio português em todas as suas variantes é um horizonte, desde os materiais anteriores à formação da língua ao português sertanejo – os mundos do Português não têm fronteiras, são de escala planetária e memória vivificável.  
Uma política cultural é uma política do gosto, uma política do gosto tout court não tem sentido, só se afirma no contexto abrangente de uma política cultural – a experiência do artístico tem universos que lhe determinam um antes e um depois, na cronologia vital de cada um e na própria percepção sensível. Esse experiência tem os seus exteriores, para além dos tempos que lhe traçam, para cada um, contornos específicos – é como se a política cultural fosse o amor e tudo o que lembra e relança e a experiência artística a paixão, o momento explosivo interior. Mas uma política cultural são instituições do sector público, é o serviço público de associações criativas profissionais sem fins lucrativos, é o apoio às actividades amadoras das tradições locais como o Auto de Floripes ou os caretos, são essas fábricas do sensível que permanentemente exercitam os ofícios artísticos e não redes de oferta de produtos tóxicos, como os financeiros, com graus de toxicidade cada vez maiores, como pudemos constatar agora com o caso BES. 
Uma instituição construída com dinheiro dos contribuintes europeus não pode programar porno-chachadas promovidas a objecto artístico – ou ao dito entretenimento que abre as portas para todas as formas de desqualificação das emoções e da razão.   O que quer dizer que não podem ser bordéis, armazéns de revenda de coisas requentadas e estupidificantes, atentados à fantasia de que falava Pirandello. 
Para isto tudo necessitamos de um Ministério da Cultura.

fernando mora ramos

domingo, 3 de agosto de 2014

O sistémico que convém e a ética dos banqueiros

O capitalismo é um sistema que estabelece que o poder do dinheiro se sobrepõe ao poder que for, seja o do Estado autoritário puro e duro de que se serve ou que o expressa, seja a democracia em que grau estiver – o Estado puro e duro sempre se deu com a estrutura oligárquica e nunca tomou o seu fim e a implantação de outro sistema como objectivos. O modelo social deste sistema, cuja expressão política adequada é o ultraliberalismo, é o da destruição total de tudo o que seja aplicação de dinheiro em finalidades sociais, não rendíveis na lógica lucrativa privatizável maximizada. O dinheiro é negócio e existe para fazer dinheiro privado, mormente sob a forma de crédito, o que é hoje a sua forma mais rendível e rápida de lucrar – a velocidade cumpre um papel decisivo na vertigem da ganância (psicologia “espontânea” do credor na selva do real) associada aos fluxos de compra e venda de acções globalizados e do lucro associado às taxas usurárias (descem para voltar a subir) dos fundos creditícios. Não é por acaso que à volta desta forma de negócio se tenha erguido um sistema integral quase inexpugnável: teórico através de serventuários universitários que conferem uma aura de cientificidade aos seus mecanismos “positivos”, socialmente higienizadores deitando borda-fora os fracos, que os buracos e as bolhas especulativas sempre desmentem, mediático como propagador da ideologia única do lucro privado como princípio sagrado, servindo para isso um vasto coro de escribas e falantes nos palcos misturados da opinião e da propaganda, económico com o poder real dos bancos e das agências de rating, gangsterismo estatuído em lei internacional, governativo pelo lado de como os governos são os criados mais diligentes do financismo e seus propagadores relativizando o papel do Estado para mínimos interventivos reais – o Estado mínimo será um Estado apenas repressor, militarizado. 
Este sistema tem obviamente uma geografia e os seus exércitos e não abandona as outras formas de capitalismo que dependem dos recursos naturais planetários e da produção, nem aquele outro, chamado cultural e que criou um universo de entretenimento que converteu tudo em passatempo: as atrocidades constantes são info-entretenimento, preenchem tempo e consomem reservas de emoção cada vez mais mecanicamente reativa, desgastada na repetição insuportável, no domínio do que na tragédia antiga era profunda reflexão e terapia comunitária através do teatro – a “purga terapêutica”, limpeza espiritual, através da piedade e do terror, a educação para a compaixão pelo convívio à exposição do tabu rompido, através da palavra que nunca se faz – na tragédia - fuga desqualificada para o nada que é o que enche, na actualidade, os ecrãs de tudo e seja o que for.  
A mercantilização de todas as esferas do espírito, sangue que corre nas veias poluídas da sociedade e que ocupa os cérebros emergindo na actual escola – a que chamam educação e que querem adaptar ao que chamam economia - faz com que, pelo poder totémico que tem – que acrescenta ao seu poder real os outros, o poder dos fétiches e os que fazem sonhar com a vida dos ricos (seja o que isso for) – se subalternize o humano a uma sua própria criação, subjugando-o. Assim se complete um quadro a que se pode chamar sistema.
Mas a utilização desta palavra é extraordinária pois se aplica só nuns casos. O não reconhecimento do carácter sistémico deste capitalismo, o que seria reconhecer as suas “virtudes” destrutivas essenciais, genéticas, coincide com a defesa, pelos seus partidários, da capacidade da democracia lhe responder, essencialmente como actividade parlamentar para-governativa e também estruturante do que é a oposição. Ou melhor, de lhe resistir, que não pelo seu controlo já que o mercado deve ser absolutamente livre, isto é, desregulado – para o mercado a lei para à porta da rendibilidade do negócio e, seja como for, e no limite, compra-se. Evidentemente que entendem a democracia como um jogo, o jogo da palavra “liberdade”, aplicado a todos, mesmo a quem não tem meios de intervir realmente numa escala em que apenas os donos da média, os poderes do crédito e da publicidade, aliados do poder governativo, o podem fazer. O jogo da democracia dá para tudo e mesmo as divergências são formas de estruturação da aparência livre do sistema, sendo que verdadeiramente estéril, mudança bloqueada, é a prática grudada do antagonismo que se pratica como choque de supostos contrários e nada produz nesse confronto. Não será este mesmismo do que é antagonizado uma forma de bloqueio da própria possibilidade de se criarem espaços de compreensão real do que sucede, espaços fora de todo o tipo de controlo, cidadania? O que parece ser esclarecimento acaba, pelas vias do espectáculo de info-entretenimento, por ser ocultação. O que parece e se afirma transparência turva. 
Na realidade o carácter sistémico deste capitalismo tem como resultado a destruição da democracia – e do planeta, sabemo-lo - pois o sistema democrático, tal como é exercido pelos actuais poderes, não exerce sobre ele nenhum tipo de controlo nem regulação que justamente lhe controle a força sistémica, subalternizando-o e retirando-lhe um poder absolutizado, incapacitando-o de agir como uma totalidade de poder em todo o terreno. A sociedade do hipercontrolo massivo de consumo de massas e do financismo capitalista é isso, lucro livre nas transacções financeiras, desvalorização do trabalho e controlo das mentes através do controlo pela conversão de tudo em práticas de consumo ideologizadas, ritualizadas e miméticas – os consumidores são estrelas passivas do espectáculo do consumo, projectam de si a imagem que lhes vendem, os comportamentos são mimetizados em massa pelo efeito da sedução publicitária, ideologia específica do mercado – não há produto que na publicidade não tenha virtudes milagrosas e não liberte, não acrescente velocidade, não poupe tempo, não faça desaparecer arestas, dores, o que for. Nas paisagens do consumo o paraíso está na senha do cartão de crédito. Nunca a miséria mediana se sonhou tão idêntica, visibilizada, supostamente autodeterminada, com a arrogância dourada das elites – vejam-se as tais selfies. E não é história de self made man, é ilusão formatada como desejo. Quem não entende que uma autoestrada é uma via com portagens pagas, regras de uso e espaço absolutamente controlado, vídeo-vigiado, extensões de país privatizadas?
Engraçado é ver agora que o risco sistémico aparece associado à situação do BES, como se resultasse de uma patologia e o sistema fosse aquele que gera a tal confiança ou desconfiança nos bancos em função de comportamentos banqueiros – isto da confiança é para os bancos o que a fé é para a religião. O dinheiro está no lugar de Deus e vive de uma relação de culto (a publicidade do que é financeiro é omnipresente e multiplica-se a sofisticação das suas narrativas felicíssimas) e os banqueiros são os seus sacerdotes, magos dos meandros das finanças que sendo do todo acionista é deles. 
O problema é o capitalismo no seu todo e esta fase extremista a que chegou, com total desprezo pelo tipo de democracia que antes lhe convinha, no tempo em que admitia outras lógicas de distribuição por razões que a história explica associadas ao pós-guerra e ao inimigo soviético. Isto não vai parar, pois só um dado grau de controlo democrático deste capitalismo selvagem de novo tipo o poderá fazer, o que implica uma democracia também reinventada e um regresso da política ao plano das decisões globais. Ao estado democrático não basta tratar dos estragos do descontrolo selvagem deste sistema no planeta e em cada economia, com os seus conselhos de administração – “nomeados” eleitoralmente pelas formações de eleitores mais ou menos agidas por diversas formas de medo e mais que minoritárias face à totalidade dos votantes - a fingir de governos. Quem parece mandar no mundo são os tais “Fundos Abutre” como lhes chamam. O sistema das eleições não elege um poder que governe, elege um conselho de administração para reparação dos estragos sistémicos – um governo bombeiro – e um grupo de apaniguados do caos desregulado que é útil ao financismo para destruição do que é despesa social e serviço público. 
Pois estamos então em pleno risco sistémico e como alguns dizem isto é – seria, mas não é - o resultado de malfeitorias, tentando fulanizar o que é do esquema – como se este Espírito Santo fosse menos sério que outros, o Jardim Gonçalves, ou outro nome qualquer e o que acontece fosse coisa de “psicopatas vigaristas” que, curiosamente, são quem manda. Como se o sistema fosse alheio a isso e produzisse, a contrário, por efeito sistémico, doses de ética a montante a jusante da vida da dívida fluxionária e das bolsas, só que nada garantindo relativamente ao perfil dos seus administradores, principalmente dos Presidentes, apesar do BES ter internamente seis instâncias de controlo dos seus movimentos financeiros. 
Não vive o sistema de fraude, de esbulho, de saque e de saques iniciais – está teorizado e a cada início ou recomeço de fortuna é notório – de golpadas, de desvios, de produtos especulativos, de bolhas, como dizem, de um esquema transversal e mais ou menos oculto, de falta de ética e traficância em toda a sua orgânica altamente artificializada e compartimentada? Não é o financismo uma nova etapa da guerra sistémica do capitalismo contra toda e qualquer ordem mais justa que a que o seu caos alimentado poderosamente cria no mundo, porque para ele essa ordem é despesa, e pública, e a isso reage cegamente? 
Banqueiro sério? Só mesmo o do Pessoa que se revela, sem disfarce, inimigo das ficções sociais. Valha-nos a Dona Branca, coitadinha, ao menos não provocava risco sistémico, só mesmo lá no quarteirão.

fernando mora ramos

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Hasta siempre camarada

O meu amigo Álvaro
Não tenho dele
Mais que a frase
E tudo o que vai da frase até ao infinito imediato 
- Dedos e respirações -
Era como a alegria
De se dar simples como nos encontrarmos
E era 
O olhar que a infância 
Pousou num galho
Como o que se põe a sonhar todos os dias
Nada maquinal mas vital
Por acontecer e deve iniciar-se 
Coisa que se abre e não começa cansada
Mesmo no limite

O meu amigo 
Deu-me o Uruguai e a guacamole
Fizemo-la juntos na misturadora
Não sei se feminina ou masculina ou híbrida
Abacate e coentros cebola e um pingo de vinagre em bom azeite
E alho
O meu amigo trouxe-me
As pastagens que tinha à mão da memória ao não lugar que me habita Para que paisagens de outra escala e lugares tomem lugar
E que é dentro
Onde os pardais cantam sem crer em que fronteira
Assobiam 
De um lado ou outro 
Do arame do betão do silêncio vigiado
Do sem limite 
Que as entranhas têm de planeta

Vocês não o conhecem 
Uma alegria do tamanho de não sei que diga
Do mar talvez
Quando ressuscita
Nas nossas cabeças urbanas
Não conheço optimismo tão futurista 
Como este que pudemos fabricar dias e em tempos vários 
Entre nós e a vida - a vida
Pão que se fez de palavras e silêncio alvoroçado
- estavas doente -
De ossos e pausas que os ossos estão ali para nos chamar esqueleto
E o puro milagre de estar ainda de pé 

Se houve quem como uma água rápida
Falasse voando 
Era o meu amigo
E cristalina de afectos e aberturas
De risos que não acabam de fogo-de-artifício
Sobre o pouco ou o imenso
O cosmos ou a formiga

Um riso de poema contínuo residente
Sangue que nas veias nos corre então alegre 
Contagiado
Tomei-o droga que dura
Porque há em nós
Um princípio de logística orgânica
Que nos leva a viver o instante melhor que o que passou
- sem vocação para a morte disse Eugénio de Dias Coelho
Pois era assim - 

Vocês não conhecem o meu amigo 
E não pensem que sou dado a leixa-prens
Ou a coisas de bem cavalgar
Que sela seja protocolar
Antes dado a amizades sem rimas e cantochão
Desafinado como o outro
Mas com razão
De emoção autêntica

O Álvaro na encruzilhada dos milagres e visões
Era Beckett e Mujica
Violino e uma espécie de download de si mesmo
Acidente vital
Por digitais que fossem seus prumos ocidentais
Era pura desordem ordenada
 A esquerda e a vanguarda já toda fora do sítio
Sem onde nem quem com alguns outros
Na Emenda
E onde por perto Pessoa 
É de ferro fundido
Fodido

Que serve mijar fora do penico
Se o penico não vende
E mijar fora 
É consequentemente performativo
Um activo
E se argumenta inovação criatividades publicidades
Para que as sustentabilidades
Habitem cada vez mais a engrossada poluída narrativa
Que a vida ocupou 
Como o tanque a livre circulação
Das ideias que o sejam
Só a erva daninha nos contém

Pois isto não é possível 
Conciliar
Com o propósito mui são
De fazer algo não visto e verbal felino
Artesanal electro-acústico 
Sonoro e visual 
Coração fora de borda
Sem trela e partitura
Voz artaudiana 
Berrado nonsense ou nada articulado
Em sucessivos pleonasmos estruturantes e onomatopaicos
- não disse inscrito mas escrito - são tatuagens sistémicas -

O camarada era amigo
E nada nos ligava de umbigo
Como de foice ou de martelo cruzados
Se garantisse pela simbólica o que só os dias podem provar
- o outro dizia “mostra as pinturas, não o cartão” -
Mesmo que foice e martelo fosse a nossa lida
Teclado de mísseis e debulhadora crítica 
Centrais 
Actualizados anacronicamente
Corações territoriais Ilhas e terras livres de jugos
A Cuba queríamos ir replantar Numância
Que se perde em turismos finitos
Agora ânsia é o capitalismo liberalizado aos poucochinhos
O sabão macaco que venha
O shave o dia after fresco a marca e o saque competitivo


Cada um filho de suas sombras e luzes
 Sem donos nem mordomos
O que posso dizer 
Mano
É que te conheço
Como ideia mapa que eu tinha dessa Latina América
De Allende e do teu pai
Camarada
Hasta siempre 
Comandante Zúñiga

fernando mora ramos

domingo, 4 de maio de 2014

Um coração alfabeto



Os tempos vão de uma superficialidade prenhe de velocidade constituinte. O fugaz da coisa sobrepõe-se à possibilidade da sua compreensão e a coisa acontecida, sobrepondo-se numa instante explosão estelar, esconde a anterior num efeito permanente que faz do real aquela imensa parte do iceberg que deixa de se ver e se junta à que nunca se vê, lá onde o segredo da política a torna privada e lucro tribal de chefes e apaniguados.
Antes de pousar e ser apreensível, apropriável, o que quer que seja que faça parte deste fluxo do real e tenha acontecido – célula narrativa - reparte para o espaço da sua expansão mediatizada na sua ilimitada reprodução em todo o tipo de suportes tecnológico-imagéticos, que sobre o real estão focados como abutres sobre a possibilidade sempre desejada de um cadáver fresco – é assim que se alimenta o share, esse animal massivo voraz. É o caso da banana do Dani Alves, cadáver agora celebrado, que teve um gesto invulgar: comer uma banana à vista do planeta – diz-se agora que orientado por um conselheiro publicitário bem intencionado!!!? O gesto remete, por contraste opositor, para aquela frase do Osvaldo de Andrade que dizia que “só a antropofagia nos une” já que a banana não seria uma banana mas a alma do inimigo, o racismo, assim executado.  Na frase do modernista a ideia seria a de adquirir as qualidades do outro, como no caso do Bispo Sardinha que, grelhado por Tupinambás com mitra e tudo lhes permitiria subir aos céus pintados da Igreja Católica nas suas catedrais luxuosas paramentados como Sardinha estava. Aí seria essa qualidade de a alma voar que se desejava, aqui é o enterro do racismo que se executa.
Entretanto, num outro nível de leitura menos metafórico mas também rico, Dani Alves desmontou o gesto do tolo de aldeia global futebolística que o agride ao fazer o que é natural, comer a banana e tomá-la pelo que é literalmente, uma banana. Só um imbecil é que pensa que comer bananas é coisa de macacos no sentido em que os macacos são menos capazes de paladar do que nós e que ser macaco é ser menos que ser europeu e caucasiano, por exemplo. Tomaram os macacos e uma parte imensa de famintos em franco crescimento populacional entre nós, comer bananas – as da Madeira estão caríssimas. Na realidade, o Dani Alves adquiriu potássio a meio do jogo e comeu a musa - é como se chama a espécie comida. Tudo gestos de uma inteligência pouco futebolística, aparentemente. E é isso que espanta. Parte-se do princípio, para tanto espanto pela atitude, que o jogador é burro e que portanto reagiria agressivamente, cuspiria no adepto – na bola, cuspir-se, é um gesto identitário, a relva que o diga – faria um pinete, exibiria os genitais ao inimigo provocador, qualquer coisa do tipo. Essa é a visão que o tolo de aldeia global, o adepto inimigo-burro, tem do outro. Ele não espera que o outro jogador jogue o inesperado e menos ainda que jogue uma inteligência que o adepto não teve quando lhe atirou a banana e que, na realidade, não tem nem pratica – a inteligência é uma prática e um processo, um método, não se pratica num relvado tão amplo em profundidade analítica, embora tenha os seus níveis de objectivação nas pernas que correm, nas cabeçadas oportunas, nas bolas paradas e na visão periférica de poucos. Já o contrário não se pode dizer: que o jogo, o campo e sua TV, e sobretudo os adeptos não sejam um laboratório particularmente útil à chamada simiologia.
A reacção da média carnavaliza algo mais profundo. Neste momento já há mais bananas na floresta mediática que as que se produzem. Mas vejamos: primeiro o futebol é um território de guerras civis em efervescência continuada – alimentada - em que se projectam radicalismos de diversa índole. É o espaço físico presencial massivo do pão e circo contemporâneo em que se vazam frustrações e desejos tribais mediatizados, bairristas, contra “o outro”, seja ele do outro clube, seja árabe, seja negro, seja mulato, seja o que for que não seja supostamente esse nós reconhecido, ou o nosso “preto aculturado/branco por dentro”, como um certo Rei da bola – no tempo colonial falávamos muito desta categoria de pessoas, via única para muitos de ter de viver, é necessário compreendê-lo. Segundo, o primado da vitória traduzido na necessidade de humilhar o derrotado, que todo um tipo de média alimenta de modo interligado num espaço mediatizado uniforme e único, satisfazendo esses instintos básicos de uma “audiência” fabricada nos entretenimentos televisivos e desenvolvendo narrativas de luta constante entre gladiadores da bola, estabelece a regra constante de um comportamento que é exactamente o que se espera do militante clubista para exactamente vender o contrário – um e outro movimentos fazem o share. É como aquele tipo de escritório de advogados que ganha dinheiro com a defesa do réu e com a sua acusação, lá a natureza do crime ou a verdade isso são coisas da filosofia, o direito é um balcão.
Em Os Persas, Ésquilo faz o contrário, canta a dignidade dos vencidos. Mas isso era naquele dantes arcaico e matricial em que a democracia das atitudes não era vã e o outro era motivo de culto por ser outro, já que um certo tipo de heroísmo tinha fundamento épico e respeitar o adversário só engrandecia o vencedor. O Dani Alves teve um gesto simples e grande, agradeceu a prenda celebrando-a na mastigação.
Não se é de um clube sem se ser – relativamente pois, estamos nos tempos do hard e do soft - contra em relação a qualquer outro. Um contra que muitas vezes é isso mesmo, racista. Obviamente que na era em que os clubes são empresas e em que a ideia de terem uma identidade de tipo cultural, nacional, nada diz, o que sucede é de facto que os universos clubistas são empresariais e o fanatismo a forma específica de uma “cidadania” praticada por transfert, confundindo-se a empresa com a nação – a ideia de um clube que é mais nacional de que outro clube também português é pura ficção num tempo de mercantilização absoluta e de investimento especulativo, de SADES e outras sociedades mais anónimas por certo. A mesma “cultura tribal-empresarial” acontece num território de supostas diferenças culturais-civilizacionais, fabricadas, cuidadosamente elaboradas virtualmente pela tal publicidade, a subliminar e a brutal.
A cegueira instalada na bola vai ao ponto de se assassinar o adversário com very lights, ao tiroteio de rua, como agora em Nápoles com vários feridos e um deles em perigo de vida, às mortes em massa pelo descontrolo da multidão enraivecida e até ao assassinato do árbitro em campo como aconteceu no Brasil num jogo irrelevante na lógica das hierarquias entre campeonatos – foi num jogo de juniores, num campeonato regional amador, nos confins do Brasil e o árbitro era um adolescente...
O que vale uma banana? Um banana, nós sabemos. O tal adepto imbecil, tolo-global e aldeão, foi crucificado e já se fala de uma vitória sobre o racismo, etc. É tudo de uma pobreza mental confrangedora e é essa idiotia que faz o ambiente – como no resto pensa-se que se resolvem as coisas com a lógica da campanha publicitária como se esta alfabetizasse corações, mas não. É o que se respira que forma as cabeças e quando se respira o que polui só erradicando a poluição se resolve. Cortando na raiz e educando para a liberdade livre, despreconceituada e sábia, culta e laica. A mesma cena do mesmo próximo episódio está para breve. Num estádio perto de si. Os porcos há muito triunfaram sobre os macacos, esses nem entravam na narrativa.

fernando mora ramos


terça-feira, 29 de abril de 2014

Abril de escravos mil?



Comemorar como quem põe mais um prego no caixão é recusar a potência inscrita de liberdade, justiça e igualdade que Abril trouxe e que existe tão intacta quanto tem vindo, de novo, a tomar a forma de um desejo colectivo como o prova a manifestação abrilista, única de abrangência, clima libertador e diversidade, de 15 de Setembro de 2012. Em Portugal deseja-se um novo Abril propulsionado pelo de 1974 – é por não ter sido cumprido, tendo acontecido, à vista como uma terra boa que se julga achar, que as potencialidades são reais enquanto Abril não estiver para além da memória ou pela via da usurpação da sua carga simbólica convertido no que não é, um qualquer 25 de Novembro. Os sinais desse desejo acontecem diariamente contra uma verdade oficial que ocupa a média televisiva, em particular e estrategicamente – é uma ocupação sistémica com alibis de democracia pelo meio, tal como sucede com o Parlamento, instituição do regime que neste momento não é representativa nem da nação, nem dos imperativos de liberdade e futuro.

Ainda agora, 21 de Abril de 2014, o debate sobre o 25 de Abril com Soares, Pacheco, Freitas e Rosas mostrou e demonstrou esse desejo de democracia como programa e constrói um imaginário para estas europeias de verdadeiro plebiscito a uma alternativa e de derrube da ditadura que aí vem – os termos que se usam para caracterizar a política governativa são claros, que se está a criar uma sociedade “ não democrático e autoritária” (Pacheco), contra “os direitos humanos e a inteligência” (Soares), que “despreza as pessoas, descartáveis, governo desumano” (Freitas), “eles fingem que são democratas, é preciso derrubar este governo” (Soares).
O que é necessário fazer é o que não se fez e foi possível em embriões de novas sociabilidades destruídos policialmente pela “normalização democrática” primeiro e pela integração europeia depois – esta nunca aconteceu pela convergência entre os níveis de desenvolvimento díspares e as desigualdades nacionais, no plano do aprofundamento das democracias versus qualidade das vidas de cada país. O que aconteceu foi uma dissociação progressiva entre países numa integração subalternizante para os do Sul, europas de primeira, segunda, terceira e por-aí-fora. A bitola das desigualdades não cabe na visão mecânica das estatísticas, há portanto a considerar nos países avançados as comunidades emigrantes que, com regresso de um racismo activista, colocam questões mais que problemáticas à ideia de uma Europa da inclusão – pelo contrário, como temos visto na Alemanha, em França, na Itália e na Inglaterra. A conversa das duas velocidades oculta ainda muitas outras realidades, a velocidade em si não é uma via de integração, só tem como ideia aquela pobre ideia do desenvolvimento enquanto fenómeno quantitativo e movimento perpétuo de progresso, hoje mais que posto em causa e sinónimo de destruição do planeta. A democracia na Europa é uma questão, a economia fê-la submergir, a política foi secundarizada, existem questões de liberdade, culturais, religiosas e raciais que não são irrelevantes nem coisas do passado, resolvidas – essa Europa já não o é.
A propaganda do establishment, assumidamente pragmática, a política real, culpando-te a ti, do Sul por seres quem és em nome de uma superioridade laboral especificamente alemã lança de novo o mote da superioridade racial e está presa à venda da ideia – as ideias são marketing para o poder conservador neoliberal europeu, consumo, horizonte atingido no lugar de Deus - de um pragmático comboio de duas classes, esquecendo que muitos viajam na carga e clandestinos e outros estão parados onde nada chega, os interiores abandonados em que vivem populações idosas, além de que, nas fronteiras da Europa muitos morrem numa espécie de catástrofe constante, como acontece em Lampedusa ou Melilla. O desejo de Eldorado persegue uma figura fantasmática, mas prossegue, a terra prometida é cada vez mais um espaço securitário burocrático, fortaleza acossada. Essa propaganda que afirma que apesar de tudo continuamos a parte do mundo civilizado mais civilizada enquanto deita para o lixo justamente o estado social que a caracterizava enquanto tal, esconde também, por exemplo, que a disparidade salarial na Europa civilizada pode chegar a abismos de distância como acontecia nas sociedades asiáticas de outrora: o salário de Gaspar é de 22.400 euros, muitas pensões rurais não atingem os 250 euros e esta diferença está longe de ser aquela que se verifica no sector bancário e privado em geral, em que há indivíduos, lembremo-nos dos Jardins Gonçalves das Opus Dei que são donos de pirâmides de ouro tendo enriquecido pela via da gestão, das administrações, do tráfico de influências e da especulação.
Abril interessa pelas conquistas, praticamente destruídas - não tendo sentido uma fixação na sua reconstrução mecânica como A política alternativa – mas interessa mais pelo que encerra de não realizado ao tempo: a revolução que se viveu como experiência mas que não se enraizou como democracia real.
A tomada real do poder por um bloco social que não veja o futuro como dependência, sujeição a terceiros e pseudodemocracia massivas, devir empobrecido, desqualificado, pura imitação do que deva ser uma democracia, é decisiva. Tomada do poder por um bloco vasto que deseje um país da pluralidade das culturas que ao mesmo tempo não faça desaparecer a maravilhosa língua que nos identifica e teve um papel moldador de outros mundos, não fosse a nossa língua, uma pátria aberta aos falantes de outras línguas, matriz de pluralidades culturais, nas origens e nas consequências das partilhas com outros, vejam-se os crioulos, o português do sertão nordestino, de Moçambique, o português brasileiro, todas as formas de falar a língua que nenhum acordo travará e que beneficiariam, todas elas, de um contacto permanente e profícuo com uma matriz cuidada e amada. O que supõe uma política da língua menos obcecada pelo inglês, seja técnico ou de praia e sorria yes no dente perfilado para turista consumir... Se ao menos fosse o de Shakespeare estaria perto de uma mitologia comum greco-latina e até, já que o inglês tem o seu latim dentro, de uma matriz algo coincidente, parcialmente. O problema do português é também o da colonização da língua, a sua descaracterização fruto da política real, uma antipolítica, como o é a questão da natalidade. São questões decisivas.
Abril comemorado como o fazem oficialmente é um Abril desvitalizado, sem a sua “cafeína”, um Abril contra Abril. A normalização democrática, como a expressão trai, foi um modo de converter as conquistas que chegaram a ser direitos praticados num misto de romagem de saudade a Abril de 1974 e de alguma excitação polémica em torno da sua curiosidade histórica, tempo excêntrico, particularmente para os que não viveram Abril e a quem vendem a ideia de uma espécie de período de pés descalços no poder, de momento de loucura pouco mansa dos avós, de nenhuns brandos costumes, de desgoverno – desgoverno que agora nos conduz para o abismo e que assim olha Abril, um Abril que não foi, enquanto durou, obcecado de bancos nem em mercados, mas em população e democracia. Abril que nada teve de carnificina e que se algum sangue trouxe foi pelo anticomunismo e antissocialismo de meia dúzia é apresentado como excessivo, tresloucado, quando terrorista era o sistema a que deu fim – em Abril até o PSD era socialista e contra a exploração, falava mais em trabalhadores do que em classe média, claro que a estrutura do voto – social - era outra.
Um novo “respeitinho é que é preciso” é o que quer este “jovem poder”. Querem uma espécie de passividade contente do sacrificado – é a visão de um “cidadão” obediente ao chefe - que vota na via única da dívida como não havendo para além dela outra vida – com eles vão voltar as bandeirinhas e o corta-fitismo, as várias inaugurações para a mesma coisa inaugurada, como já acontece. A propaganda hoje omnipresente anda exultante. Eles confundem, de facto, regressão com vida e futuro com retrocesso, estão mais perto de Salazar do que dos economistas que não cessam de citar, as suas políticas são tão científicas quanto os resultados que apresentam: fome como nunca houve (25% dos portugueses no limiar da pobreza e muitos nem isso), desemprego/emigração (não se pode ler de outro modo), vulgarização e destruição do universo escolar, dos aparelhos mínimos da cultura e das artes, concepção da sociedade como uma espécie de falanstérios de vida/produção concentrados, com as pessoas a receber salários menos que mínimos e a viver em espaços urbanos degradados, população que deve estar agradecida e dobrar a cerviz pelo esforço que os governantes fazem – se eles soubessem o que custa governar! Onde é que já ouvimos isto? Um país a ser “organizado” como urbanizações degradadas de um lado e, a par, uma política de condomínios para criaturas Gold, algumas já nas prisões por branqueamento de capitais. Em Espanha o BES foi multado por coisa parecida, ter clientes ligados a essa prática. O turismo é outra das obsessões, não um turismo que respeite as identidades culturais, mas um turismo folclórico que transforme os “indígenas” em criaturas gentis, guardanapo no antebraço, a prumo vincado do ferro, mal pagos mas agradecido pelo emprego, essa raridade em vias de extinção, a servir os reformados e turistas do Centro e Norte da Europa, da China e de outras paragens em que o crescimento económico prevalece, numa conversão do litoral num outro país em que domina um inglês de troca comercial, uma espécie de colónia dos paradigmas do lazer, peixe fresco e sol, em que somos apenas os serviçais, cozinheiros, barmans, criado de mesa, camareiras, porteiros e outras profissões altamente qualificadas. A quantidade de Escolas de Hotelaria que pulularam, por um lado e de campos de golfe e resorts, por outro, mostram bem a visão que os poderes têm da relação com esses terceiros do dinheiro- resta obviamente acrescentar os universos colaterais das prostituições e da pedofilia para um quadro completo, são negócio não será!
Os tais excessos que dizem que se praticaram em Abril – Oh saudoso PREC, quantas injúrias te lançam levianamente! - não foram o suficiente para vivermos hoje uma democracia plena, tivessem esses excessos ajudado a cumprir Abril. Vivemos um simulacro. Os sinais mais evidentes disso são por certo, repito, a pobreza, 25% da população, o desemprego, a emigração que voltou, a generalização do medo e a eleição do gesto da delacção como “cidadania” premiada pelo poder. O que aconteceu nos transportes públicos recentemente, o convite a delatar quem não paga ou não valida o famoso bilhete e esta coisa do concurso das facturas com prémios Audi, revelam o enfeudamento total a uma ideia de “cidadania” exemplificada paternalmente pelo lado de uma sujeição total à contabilidade de si mesmo e ao policiamento do outro – não só vives para te organizares como burocrata de ti mesmo, ficas fichado, mas és também polícia do próximo, isto é: preenchem-te um tempo mental e controlam-te por todo o lado, nas portagens, balcões, escola, hospitais, etc., enquanto querem que sejas tu também controlador, controlador controlado. És vídeo-vigiado e nem dás por isso – o que eram visões de utopistas alucinados na literatura, vem-se insinuando como real. Tudo em nome da dívida e, não esquecer, do combate ao tal terrorismo que é alimentado pelas lógicas do antiterrorismo globalizado do Estado Espectacular Integrado. Aliás com o 11 de Setembro americano – que vale o de Allende?- os calendários e suas simbólicas datas foram revalorizados ideologicamente, perdendo força tudo o que era libertador e reforçando-se tudo o que é securitário e policial.
Voltou tudo aquilo que motivou o 25 de Abril excepto a guerra colonial. De um peso equivalente hoje e mais grave, é a perda da soberania. Se antes de Abril o poder era uma força totalitária contra o povo, que não era soberano e vivia sem direito de voto e opinião livre, não decidia o seu destino, agora a entrega da soberania à Alemanha e a organizações “internacionais” dela e dos Estados Unidos dependentes, no quadro da negação de uma Europa de soberanias interligadas livremente, faz de Portugal um país colonizado, tutelado, protectorado como assumiu o direitista Portas com orgulho de protegido – necessita ser defenestrado pois. Colonizado porque a “integração” tal como se processou é uma descaracterização da nossa identidade cultural e linguística – a história do acordo ortográfico tem um significado político pois cede na matriz para traficar uns cobres, para se inglesar na vocação comerciante, os curricula escolares de Bolonha são de um generalismo wikipédia antieuropeu e pouco português no sentido de uma identidade cultural aberta, de vulgarização reles de conteúdos de conhecimento, de redução da extensão e pluralidade do saber (está tudo na net, é com cada um, dirão! como se aprender a nadar fosse uma questão só de haver um mar, um mar infinito, claro, sem ondas nem peixes maus, alguns com grandes bocarras). O que era superior e qualificado, é inferior, vulgar e mimético, citam-se blocos de net por pura mecânica numa prática totalmente desconexa, absurda. Descontextualizada. E somos tutelados, colónia, porque não temos um governo autónomo mas um governo guiado de fora, satélite dos mercados financeiros e da Alemanha, obediente e covarde.
O que hoje sucede politicamente e na economia como sujeito único é mais inspirado no salazarismo do que na libertação que os militares trouxeram – a liberdade que é uma conquista é o princípio necessário de mais liberdade, de um enraizamento da liberdade que liberte e crie igualdade, justiça, qualidade da democracia. Governa-se sob o primado de uma ditadura financeira que, em si, não gera democracia, antes a destrói. O que o défice e a suposta política anti défice trouxeram é a instauração de uma prática do lucro constante de um núcleo restrito de credores vorazes a que chamam mercados financeiros, muito para além da expressão real do pagamento da dívida e na recusa constante de que deva ser auditada – temos todos de ir a fundo e perceber o que se passa e não ir atrás do que nos contam...
O sistema da dívida e a redução da política à contabilidade da dívida, aliados ao não questionamento da lógica especuladora do crédito, são em si um Novo Velho Regime – Salazar começou nas Finanças - o da concentração de modos lucrativos que nem sequer na economia se baseiam. O financismo é uma roleta manipulada por especuladores sem escrúpulos que, não sendo cretinos e actuando sistemicamente, têm também um certo calendário político – que significa agora, perto do acto eleitoral, o verdadeiro fogo de barragem de boas notícias numéricas quando as más continuam péssimas e os problemas por resolver? Só mesmo a inabilidade deste governo e as suas contradições infantis e constantes - não é um poder adulto -, como agora em torno do sal e assucar, imagine-se, tornam a propaganda mais vulnerável do que eles gostariam, fruto de uma incompetência política levada a extremos, bebida nas juventudes partidárias e no desprezo pelo estudo e conhecimento, pelo tempo - são golpistas, oportunistas.
As pessoas vão atrás dos números e já não querem ouvir palavras? Tudo se resume à demagogia de uns quantos dados estatísticos a dar ao ambiente informativo – ideológico - consumível um ar científico de inevitabilidade – a tal “ciência” estatística só serve para augurar o pior, é pura astrologia ronceira, de feira. Isto quando sabemos que a desregulação é justamente o modo de controlo dos poderes especuladores e que a sua “ciência” não tem outra regra para além da arbitrariedade dos tais mercados. A desregulação, o que é ela mais do que permitir a manipulação a quem tem o poder de impedir a regulação controlando governos e lei? Se tens a faca e o queijo na mão cortas a fatia que queres para ti e desenvolves junto do outro a tua política de redistribuição para famintos em doses “homeopáticas” de relativização da fome e do medo, crias o trauma, a patologia da inevitabilidade da via na cabeça do consumidor, enterrado cidadão entretanto empobrecido, precário, zé-ninguém.
Abril fez-se contra a guerra, contra a exploração, contra a PIDE/DGS, contra a miséria, contra o analfabetismo, contra a condição periférica e o isolamento internacional – éramos um Estado pária, pois -, contra a necessidade de emigrar, contra o subdesenvolvimento, contra a escola elitista, contra a incultura, contra o abandono forçado dos campos, contra o absentismo dos terra-tenentes alentejanos, contra o trabalho precário, contra a inexistência de direitos sociais, laborais, de opinião livre, contra a proibição de organizar partidos, contra a violência terrorista do Estado fascista, contra a proibição da palavra, contra a liberdade de escrever, contra, contra… a subserviência e o medo eram fruto da omnipresença repressiva, o Estado tinha um rede de informadores e polícias que eram a extensão permanente da sua mão de ferro em todas as realidades íntimas, familiares, em todos os espaços de tentativa de organização política ou apenas de manifestação pública de ideias. O teatro, politicamente, viveu confinado, como numa reserva, sem uma verdadeira expressão pública e protestava quando podia com astúcia, Brecht era proibido, a literatura foi perseguida, as realizações públicas eram vigiadas e serviam muitas vezes para o regime fingir uma abertura que impedia.  O lápis azul era o meio ridículo de uma amputação constante da criação, a mão do censor prolongava o juízo do inquisidor, vinha de séculos de arbitrariedade.
Estamos agora não no caminho do mesmo, desse fascismo que foi o nosso, não faz sentido esse tipo de comparações como homogenias temporais, mas num caminho em que aspectos do mesmo teor repressivo, totalitário, não democrático, estão aí. A este tipo de nova ditadura chamar-se-á o quê, um fascismo pós-moderno? Não se trata apenas de um problema de nome, ele há muitos que identificam o que acontece, embora o termo financismo, por exemplo, tenha uma falta de conotação política necessária – diz uma coisa mas não diz a outra. A questão do autoritarismo social é no entanto real, na nossa vida quotidiana, profissional, pública. O ambiente que vivemos é já o resultado de um regime que se tem vindo a instalar e cujos traços essenciais são repressivos e castradores, policiais e com obsessão de omnipresença controladora, até ao sal que se consome.
A atitude da Presidente da Assembleia da República, Dr.ª Assunção Esteves, o modo displicente da resposta dada aos Capitães de Abril, de quem viveu Abril em Valpaços pela mão do pai alfaiate (e da concelhia do PSD) como diz a sua curta biografia na net, explica claramente a que ponto a instituição mais emblemática do que deve ser a democracia está contaminada na tutela pelo tique de um autoritarismo decisionista e irreflectido, “espontâneo”, tão colado à pele da Presidenta que nos faz pensar em outros tempos e em certo tipo de alienígenas. Estas pessoas não veem o que todos veem, então o que veem, são de que estranha origem, de que planeta?
Abril está por cumprir e porventura virá como uma nova Primavera, venha quando vier, no Inverno seja… e que se cumpra.
fernando mora ramos – actor/encenador




fernando mora ramos