sexta-feira, 3 de outubro de 2014

BUSTOS E AMAS

No parlamento há uma exposição de bustos de Presidentes da República – e estarão lá todos, mesmo aqueles que não foram Presidentes de uma República, menos ainda de uma República Democrática. Estranha-se aqui que as presidências não se prolonguem em dinastias e não estejam os reis todos até ao primeiro, o do montante, Henrique, o primeiro Afonso, já que tivemos reis que como presidentes foram mais presidentes que outros que foram presidentes e que foram mais monarcas na versão hodierna, puro corta-fitismo e nem vale falar do Presidente-rei.
Nesta altura do campeonato da crise vale tudo para mascarar o nosso real de uma normalidade que todos os dias estoira pelas costuras, seja pelos eventos-notícia escandalosos das Tecnoformas e de outros casos que hão-de vir (estão todos a ser agora destapados por quem tendo lá posto esta gente entende agora que este governo já não serve) seja por fait-divers tão curiosos como a exposição dos bustos ou a grande medida em relação às amas – se forem as do Cardeal atenção à qualidade do leite, essa deveria aliás ser a tese de licenciatura politécnica das amas em geral.
A crise, sendo a mesma em fase mais crítica, já que nada está resolvido, nem na dívida em si nem na recuperação económica/crescimento – para usar a bitola explicativa hegemonicamente corrente – pôs-nos agora a aceder ao mercado no mesmo ponto que nos levou à crise – o mesmo, mas piorado - e forma com a resposta à crise, o círculo vicioso perfeito, a pescadinha exitosa de rabo na boca: a quadratura do círculo da estratégia da sua superação é um must de visão passos-portista gasparómana, estaremos sempre a superá-la, à crise, sem nunca a superar, à crise, o impasse é perfeito. Temos uma vocação circular e não se pense que as práticas, não as do eterno retorno mas as do retorno cíclico, não espelhem bem a casta dirigente nestas décadas de democracia – governam entre o parasitismo local de autogoverno próprio e o deslumbre europeu para consumo interno, adoram ver-se sentados no Conselho ou fazendo selfies com Merkels e outros grandes líderes. Somos Europa para uns tantos que lá fazem as figuras tristes do pedinte ou a do vendido e esse lá é cada vez mais distante mesmo que a globalização seja cada vez mais instante.
Esta do busto só dá para chorar-rir. E conseguem o que querem, carnavalizar o real com a mediocridade requentada das iniciativas criativas que têm, agem enquanto poder como uma máquina constante de produção de ruído. A campanha alegre é diária, é o reverso da depressão, também diária – não é pessimismo, nem masoquismo, é consumo real de antidepressivos e ansiolíticos, vencedores do Guinness em estatística comprovada pela Infarmed, aliás. Quanto mais deprimidos mais vítimas de um sistema de graçolas ambiente que toma por leve o que pesa tragicamente, põem chantili na ferida com a mesma facilidade que despacham a avó para o quarto dos fundos. 
E as estatísticas já não são o que eram. Nos anos de Troica todos os dias éramos massacrados com números, agora os números estão numa segunda linha, já não protagonizam tanto aquela condição científica de selarem uma espécie de verdade irrenunciável todos os dias atirada para cima da nossa cegueira progressiva – há limites de resistência ao estereótipo obcecadamente metralhado, agressor. Não há pior demagogia que a dos números, os que encobrem o desemprego, os que mentem sobre o crescimento, os que escondem a realidade integrada da sua verdade, a única que seria autêntica sendo que, de científico no sentido de segurarem uma prospectiva concreta, os números nada têm. E quando mentem são brutais, indiferentes, são outros números por detrás dos primeiros. O discurso dos números é o pior dos discursos e o mais filho-de-puta, para citar o Alberto Pimenta, literatura portanto. 

Eu gostaria de uma exposição de bustos da república no Parlamento, isso abanava a modorra pasmada e pós dolorida - a da dor feita hábito - em que andamos. Segundo dizem, para além do disparate político, depois da estátua do Carmona nas Caldas, originalidade que abriu caminho a este rectaguardismo para lamentar no caminho do glorioso arcaísmo fascizante [falta uma expo dos mapas do império com a Angola nossa, etc.], as estátuas não são parecidas sequer com os bustificados, são mais feias que os modelos ou não acertam, trocam os bigodes, as papadas não são as do legítimo proprietário. É assim, vivemos de simulacros. Mas se fossem repúblicas, senhoras meninas como deusas com a bandeira a cobrir os peitos, pelo menos podíamos alegrar-nos com o que o símbolo comporta ainda de porvir.   

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