domingo, 4 de maio de 2014

Um coração alfabeto



Os tempos vão de uma superficialidade prenhe de velocidade constituinte. O fugaz da coisa sobrepõe-se à possibilidade da sua compreensão e a coisa acontecida, sobrepondo-se numa instante explosão estelar, esconde a anterior num efeito permanente que faz do real aquela imensa parte do iceberg que deixa de se ver e se junta à que nunca se vê, lá onde o segredo da política a torna privada e lucro tribal de chefes e apaniguados.
Antes de pousar e ser apreensível, apropriável, o que quer que seja que faça parte deste fluxo do real e tenha acontecido – célula narrativa - reparte para o espaço da sua expansão mediatizada na sua ilimitada reprodução em todo o tipo de suportes tecnológico-imagéticos, que sobre o real estão focados como abutres sobre a possibilidade sempre desejada de um cadáver fresco – é assim que se alimenta o share, esse animal massivo voraz. É o caso da banana do Dani Alves, cadáver agora celebrado, que teve um gesto invulgar: comer uma banana à vista do planeta – diz-se agora que orientado por um conselheiro publicitário bem intencionado!!!? O gesto remete, por contraste opositor, para aquela frase do Osvaldo de Andrade que dizia que “só a antropofagia nos une” já que a banana não seria uma banana mas a alma do inimigo, o racismo, assim executado.  Na frase do modernista a ideia seria a de adquirir as qualidades do outro, como no caso do Bispo Sardinha que, grelhado por Tupinambás com mitra e tudo lhes permitiria subir aos céus pintados da Igreja Católica nas suas catedrais luxuosas paramentados como Sardinha estava. Aí seria essa qualidade de a alma voar que se desejava, aqui é o enterro do racismo que se executa.
Entretanto, num outro nível de leitura menos metafórico mas também rico, Dani Alves desmontou o gesto do tolo de aldeia global futebolística que o agride ao fazer o que é natural, comer a banana e tomá-la pelo que é literalmente, uma banana. Só um imbecil é que pensa que comer bananas é coisa de macacos no sentido em que os macacos são menos capazes de paladar do que nós e que ser macaco é ser menos que ser europeu e caucasiano, por exemplo. Tomaram os macacos e uma parte imensa de famintos em franco crescimento populacional entre nós, comer bananas – as da Madeira estão caríssimas. Na realidade, o Dani Alves adquiriu potássio a meio do jogo e comeu a musa - é como se chama a espécie comida. Tudo gestos de uma inteligência pouco futebolística, aparentemente. E é isso que espanta. Parte-se do princípio, para tanto espanto pela atitude, que o jogador é burro e que portanto reagiria agressivamente, cuspiria no adepto – na bola, cuspir-se, é um gesto identitário, a relva que o diga – faria um pinete, exibiria os genitais ao inimigo provocador, qualquer coisa do tipo. Essa é a visão que o tolo de aldeia global, o adepto inimigo-burro, tem do outro. Ele não espera que o outro jogador jogue o inesperado e menos ainda que jogue uma inteligência que o adepto não teve quando lhe atirou a banana e que, na realidade, não tem nem pratica – a inteligência é uma prática e um processo, um método, não se pratica num relvado tão amplo em profundidade analítica, embora tenha os seus níveis de objectivação nas pernas que correm, nas cabeçadas oportunas, nas bolas paradas e na visão periférica de poucos. Já o contrário não se pode dizer: que o jogo, o campo e sua TV, e sobretudo os adeptos não sejam um laboratório particularmente útil à chamada simiologia.
A reacção da média carnavaliza algo mais profundo. Neste momento já há mais bananas na floresta mediática que as que se produzem. Mas vejamos: primeiro o futebol é um território de guerras civis em efervescência continuada – alimentada - em que se projectam radicalismos de diversa índole. É o espaço físico presencial massivo do pão e circo contemporâneo em que se vazam frustrações e desejos tribais mediatizados, bairristas, contra “o outro”, seja ele do outro clube, seja árabe, seja negro, seja mulato, seja o que for que não seja supostamente esse nós reconhecido, ou o nosso “preto aculturado/branco por dentro”, como um certo Rei da bola – no tempo colonial falávamos muito desta categoria de pessoas, via única para muitos de ter de viver, é necessário compreendê-lo. Segundo, o primado da vitória traduzido na necessidade de humilhar o derrotado, que todo um tipo de média alimenta de modo interligado num espaço mediatizado uniforme e único, satisfazendo esses instintos básicos de uma “audiência” fabricada nos entretenimentos televisivos e desenvolvendo narrativas de luta constante entre gladiadores da bola, estabelece a regra constante de um comportamento que é exactamente o que se espera do militante clubista para exactamente vender o contrário – um e outro movimentos fazem o share. É como aquele tipo de escritório de advogados que ganha dinheiro com a defesa do réu e com a sua acusação, lá a natureza do crime ou a verdade isso são coisas da filosofia, o direito é um balcão.
Em Os Persas, Ésquilo faz o contrário, canta a dignidade dos vencidos. Mas isso era naquele dantes arcaico e matricial em que a democracia das atitudes não era vã e o outro era motivo de culto por ser outro, já que um certo tipo de heroísmo tinha fundamento épico e respeitar o adversário só engrandecia o vencedor. O Dani Alves teve um gesto simples e grande, agradeceu a prenda celebrando-a na mastigação.
Não se é de um clube sem se ser – relativamente pois, estamos nos tempos do hard e do soft - contra em relação a qualquer outro. Um contra que muitas vezes é isso mesmo, racista. Obviamente que na era em que os clubes são empresas e em que a ideia de terem uma identidade de tipo cultural, nacional, nada diz, o que sucede é de facto que os universos clubistas são empresariais e o fanatismo a forma específica de uma “cidadania” praticada por transfert, confundindo-se a empresa com a nação – a ideia de um clube que é mais nacional de que outro clube também português é pura ficção num tempo de mercantilização absoluta e de investimento especulativo, de SADES e outras sociedades mais anónimas por certo. A mesma “cultura tribal-empresarial” acontece num território de supostas diferenças culturais-civilizacionais, fabricadas, cuidadosamente elaboradas virtualmente pela tal publicidade, a subliminar e a brutal.
A cegueira instalada na bola vai ao ponto de se assassinar o adversário com very lights, ao tiroteio de rua, como agora em Nápoles com vários feridos e um deles em perigo de vida, às mortes em massa pelo descontrolo da multidão enraivecida e até ao assassinato do árbitro em campo como aconteceu no Brasil num jogo irrelevante na lógica das hierarquias entre campeonatos – foi num jogo de juniores, num campeonato regional amador, nos confins do Brasil e o árbitro era um adolescente...
O que vale uma banana? Um banana, nós sabemos. O tal adepto imbecil, tolo-global e aldeão, foi crucificado e já se fala de uma vitória sobre o racismo, etc. É tudo de uma pobreza mental confrangedora e é essa idiotia que faz o ambiente – como no resto pensa-se que se resolvem as coisas com a lógica da campanha publicitária como se esta alfabetizasse corações, mas não. É o que se respira que forma as cabeças e quando se respira o que polui só erradicando a poluição se resolve. Cortando na raiz e educando para a liberdade livre, despreconceituada e sábia, culta e laica. A mesma cena do mesmo próximo episódio está para breve. Num estádio perto de si. Os porcos há muito triunfaram sobre os macacos, esses nem entravam na narrativa.

fernando mora ramos