Os tempos vão de uma superficialidade prenhe de
velocidade constituinte. O fugaz da coisa sobrepõe-se à possibilidade da sua
compreensão e a coisa acontecida, sobrepondo-se numa instante explosão estelar,
esconde a anterior num efeito permanente que faz do real aquela imensa parte do
iceberg que deixa de se ver e se junta à que nunca se vê, lá onde o segredo da
política a torna privada e lucro tribal de chefes e apaniguados.
Antes de pousar e ser apreensível, apropriável, o que
quer que seja que faça parte deste fluxo do real e tenha acontecido – célula
narrativa - reparte para o espaço da sua expansão mediatizada na sua ilimitada
reprodução em todo o tipo de suportes tecnológico-imagéticos, que sobre o real
estão focados como abutres sobre a possibilidade sempre desejada de um cadáver
fresco – é assim que se alimenta o share,
esse animal massivo voraz. É o caso da banana do Dani Alves, cadáver agora celebrado,
que teve um gesto invulgar: comer uma banana à vista do planeta – diz-se agora
que orientado por um conselheiro publicitário bem intencionado!!!? O gesto remete,
por contraste opositor, para aquela frase do Osvaldo de Andrade que dizia que “só
a antropofagia nos une” já que a banana não seria uma banana mas a alma do
inimigo, o racismo, assim executado. Na
frase do modernista a ideia seria a de adquirir as qualidades do outro, como no
caso do Bispo Sardinha que, grelhado por Tupinambás com mitra e tudo lhes
permitiria subir aos céus pintados da Igreja Católica nas suas catedrais
luxuosas paramentados como Sardinha estava. Aí seria essa qualidade de a alma
voar que se desejava, aqui é o enterro do racismo que se executa.
Entretanto, num outro nível de leitura menos metafórico
mas também rico, Dani Alves desmontou o gesto do tolo de aldeia global
futebolística que o agride ao fazer o que é natural, comer a banana e tomá-la
pelo que é literalmente, uma banana. Só um imbecil é que pensa que comer
bananas é coisa de macacos no sentido em que os macacos são menos capazes de
paladar do que nós e que ser macaco é ser menos que ser europeu e caucasiano,
por exemplo. Tomaram os macacos e uma parte imensa de famintos em franco
crescimento populacional entre nós, comer bananas – as da Madeira estão
caríssimas. Na realidade, o Dani Alves adquiriu potássio a meio do jogo e comeu
a musa - é como se chama a espécie comida. Tudo gestos de uma inteligência pouco
futebolística, aparentemente. E é isso que espanta. Parte-se do princípio, para
tanto espanto pela atitude, que o jogador é burro e que portanto reagiria
agressivamente, cuspiria no adepto – na bola, cuspir-se, é um gesto
identitário, a relva que o diga – faria um pinete, exibiria os genitais ao
inimigo provocador, qualquer coisa do tipo. Essa é a visão que o tolo de aldeia
global, o adepto inimigo-burro, tem do outro. Ele não espera que o outro
jogador jogue o inesperado e menos ainda que jogue uma inteligência que o
adepto não teve quando lhe atirou a banana e que, na realidade, não tem nem
pratica – a inteligência é uma prática e um processo, um método, não se pratica
num relvado tão amplo em profundidade analítica, embora tenha os seus níveis de
objectivação nas pernas que correm, nas cabeçadas oportunas, nas bolas paradas
e na visão periférica de poucos. Já o contrário não se pode dizer: que o jogo,
o campo e sua TV, e sobretudo os adeptos não sejam um laboratório particularmente
útil à chamada simiologia.
A reacção da média carnavaliza algo mais profundo.
Neste momento já há mais bananas na floresta mediática que as que se produzem. Mas
vejamos: primeiro o futebol é um território de guerras civis em efervescência
continuada – alimentada - em que se projectam radicalismos de diversa índole. É
o espaço físico presencial massivo do pão e circo contemporâneo em que se vazam
frustrações e desejos tribais mediatizados, bairristas, contra “o outro”, seja
ele do outro clube, seja árabe, seja negro, seja mulato, seja o que for que não
seja supostamente esse nós reconhecido, ou o nosso “preto aculturado/branco por
dentro”, como um certo Rei da bola – no tempo colonial falávamos muito desta
categoria de pessoas, via única para muitos de ter de viver, é necessário
compreendê-lo. Segundo, o primado da vitória traduzido na necessidade de humilhar
o derrotado, que todo um tipo de média alimenta de modo interligado num espaço
mediatizado uniforme e único, satisfazendo esses instintos básicos de uma
“audiência” fabricada nos entretenimentos televisivos e desenvolvendo
narrativas de luta constante entre gladiadores da bola, estabelece a regra
constante de um comportamento que é exactamente o que se espera do militante
clubista para exactamente vender o contrário – um e outro movimentos fazem o share. É como aquele tipo de escritório
de advogados que ganha dinheiro com a defesa do réu e com a sua acusação, lá a
natureza do crime ou a verdade isso são coisas da filosofia, o direito é um
balcão.
Em Os Persas,
Ésquilo faz o contrário, canta a dignidade dos vencidos. Mas isso era naquele
dantes arcaico e matricial em que a democracia das atitudes não era vã e o
outro era motivo de culto por ser outro, já que um certo tipo de heroísmo tinha
fundamento épico e respeitar o adversário só engrandecia o vencedor. O Dani Alves
teve um gesto simples e grande, agradeceu a prenda celebrando-a na mastigação.
Não se é de um clube sem se ser – relativamente pois,
estamos nos tempos do hard e do soft - contra em relação a qualquer
outro. Um contra que muitas vezes é isso mesmo, racista. Obviamente que na era
em que os clubes são empresas e em que a ideia de terem uma identidade de tipo cultural,
nacional, nada diz, o que sucede é de facto que os universos clubistas são
empresariais e o fanatismo a forma específica de uma “cidadania” praticada por transfert, confundindo-se a empresa com
a nação – a ideia de um clube que é mais nacional de que outro clube também
português é pura ficção num tempo de mercantilização absoluta e de investimento
especulativo, de SADES e outras sociedades mais anónimas por certo. A mesma
“cultura tribal-empresarial” acontece num território de supostas diferenças
culturais-civilizacionais, fabricadas, cuidadosamente elaboradas virtualmente
pela tal publicidade, a subliminar e a brutal.
A cegueira instalada na bola vai ao ponto de se
assassinar o adversário com very lights,
ao tiroteio de rua, como agora em Nápoles com vários feridos e um deles em
perigo de vida, às mortes em massa pelo descontrolo da multidão enraivecida e
até ao assassinato do árbitro em campo como aconteceu no Brasil num jogo irrelevante
na lógica das hierarquias entre campeonatos – foi num jogo de juniores, num
campeonato regional amador, nos confins do Brasil e o árbitro era um
adolescente...
O que vale uma banana? Um banana, nós sabemos. O tal
adepto imbecil, tolo-global e aldeão, foi crucificado e já se fala de uma
vitória sobre o racismo, etc. É tudo de uma pobreza mental confrangedora e é
essa idiotia que faz o ambiente – como no resto pensa-se que se resolvem as
coisas com a lógica da campanha publicitária como se esta alfabetizasse
corações, mas não. É o que se respira que forma as cabeças e quando se respira
o que polui só erradicando a poluição se resolve. Cortando na raiz e educando
para a liberdade livre, despreconceituada e sábia, culta e laica. A mesma cena
do mesmo próximo episódio está para breve. Num estádio perto de si. Os porcos
há muito triunfaram sobre os macacos, esses nem entravam na narrativa.
fernando mora ramos
fernando mora ramos