quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O nu de Harry, os assessores e as camas do IKEA

16.000 cavalos-marinhos mortos e secos, para exportar para a Ásia. E onde se passa esta mortandade? No Peru. Um animal extraordinário, beleza pura para peruanos e outros povos de alma índia, que, numa outra cultura, é um bem ansiado como elixir erótico, leva os peruanos pobres ao exercício de uma mortandade em massa e alguns outros mais bandidos a organizar a distribuição globalizada clandestina, notas contadas nas mãos sujas de mercado negro destes últimos que não chegam por certo aos pobres caçadores na mesma medida.
16.000 cavalos-marinhos, estão a vê-los, naquela dança estranha, na vertical, na água móvel que lhes determina o ritmo? As imagens na tela aquosa ganham um fascínio próprio, de câmara lenta com lente que densifica, fantasia inexplicável da criação, como que parida de um nada cósmico preexistente que tudo contém como possível.
Paul Ryan, o segundo do candidato conservador às eleições americanas afirma sem papas na língua que a Europa é medíocre. Não diz o mesmo dos chineses, comandados pelo partido único gestor de um capitalismo americanizado vencedor, nem do Texas, nem da Índia das castas, nem se lembra da querida Arábia Saudita que construirá em breve uma cidade só para mulheres, já que nesta Arábia que não é das mil e uma noites trabalhar ao lado e com homens a lei primitiva não permite. Segundo a sua biografia fez de tudo, vendeu hambúrgueres e foi paquete, grandes experiências, self made man. E a Europa é medíocre, diz Paul Ryan, porque não tem ambição. A ambição do lobo solitário, daquele tipo que quer escalar os himalaias de riqueza que surgem como oportunidade a cada um se cada um for obcecadamente ganancioso e destinado a winner, coisa de genética da predestinação. O indivíduo individual tem de ter como pátria ilimitada a sua liberdade de vencer. O que é definido como interesse de todos deve sujeitar-se ao império desse cada um que vença e estabeleça os limites de vida dos outros. Este senhor defende que o bem público é secundário, dispensável, descartável e que a sociedade é um espaço de predação em que o mais violento/esperto, desprovido de escrúpulos e qualquer referência ética – é o bem comum a defini-la – pode e deve servir-se de tudo e dos outros para impor a sua ambição. Ao preço do que for. Se um outro ambicioso, maior do que ele próprio seja, o crucificar num destes tiroteios frequentes nos EUA com cinco balas em forma de cruz que dirá Ryan antes de soletrar o último desejo? Falará dos limites da liberdade de cada um? É que não há forma de enriquecer apenas trabalhando, não existe na história económica forma de acumulação primitiva de capital que não seja ilegítima, sabe-se. Este Ryan é daqueles tipos que usará certamente o próximo massacre – a produção está em alta - como oportunidade de venda de armas. É uma criatura rupestre. Ofereçam-lhe uma tanga europeia, daquelas que o Presidente Barroso criou há muito, sempre será um avanço civilizacional.
No jardim da Estrela a IKEA lança a sua nova vertente de negócio, Hoteis sob a forma de hostal, dinheiro a “construir” a partir da bolsa da massa dos turistas errantes, transportadores de mochilas e parentes. Meia dúzia de incautos, deitados em camas colocadas na álea central do jardim, casais na maioria, declaram que aquela dormida ao ar livre vai cimentar os respectivos amores, conjugais nupciais ou pré, para o resto das suas vidas. Não há melhor publicidade, longos minutos de direito de antena em todas as televisões para esta publicidade encapotada – que lei para esta ilegalidade? Valia mais que o IKEA dotasse de boas camas e mesmo casas, terá dinheiro para isso, toda a população dos sem-abrigo da capital. E também que as televisões não fossem atrás da primeira suposta parvoíce que lhes garante audiência fácil. Na realidade o golpismo, mais light ou mais violento, é a “ética” do negócio e este não tem fronteiras, bem público e interesse privado dando as mãos na mentira perfeita. O kitch tem destas coisas, por cá chama-se saloiice burgessa, também em franca expansão.
O Príncipe Harry foi apanhado nu numa coboiada em Las Vegas, sairá à mãe que era de poucas monarquias nas maneiras? No Sun, a primeira página do seu corpo inteiro fez transbordar de excesso a alta taxa libidinal voyeurística que mantém os ingleses nos limites da adrenalina legal, praticantes obstinados que são da dose de perversão definida como politicamente correcta nos domínios de uma especificamente anglo-saxónica e humorada tensão vital porno abrangente. Serão tomadas medidas pelo senhor Cameron para que o rapaz ande sempre de calças coladas ao corpo, pregam-lhas? O magnate Murdoch disse para deixarem em paz o rapaz.
Assange não foi apanhado nu, mas estará na Embaixada do Equador em residência vigiada, a acreditar nos democratas conservadores, pelo resto da vida fora. O Ministro da Segurança inglês diz que mal saia da Embaixada será preso e extraditado para a Suécia onde, como se diz, alegadamente terá violentado não uma rapariga, mas duas – terá este jornalista, na Suécia especificamente e apenas, ganho qualidades de predador alfa com cio? O que é que levará os tribunais suecos a obrigá-lo a julgamento? Provas fotográficas, vídeos? Feitos por quem? Pelas moças?
Os assessores do governo português oriundos de instituições privadas, nenhum deles que se saiba apanhado de calças na mão nem de nu integral, ao contrário certamente dos perversos dos assessores público, terão direito aos subsídios que a todos os outros foram cortados. O que explicará isto? Dois pesos e duas medidas? Mas quem duvida que este é o governo dos dois pesos e duas medidas? Para que serve o que é público que não seja para engrossar os lucros de um micro universo privado cada vez mais restrito?

Fernando Mora Ramos

domingo, 12 de agosto de 2012

Guerra fria

Neste período em que o calor aperta, o desconchavo e o oportunismo táctico tomam as suas pole positions na vida nacional: a produção de fantasias coxas do mais autêntico kitsch consegue ultrapassar qualquer previsão, mesmo a mais avisada da nossa originalidade extrema. A história dos ares condicionados, um pouco sádica para os calores que fazem tendo em conta o privilégio que uns tantos têm de lhes aceder e a tragédia da Casa das Histórias de Paula Rego só podiam suceder por cá, sendo que ares condicionados são um bem universal a que acedemos, como a coca-cola já depois de Abril – em termos fenoménicos, digamos - e Paula Rego uma pintora portuguesa, aqui nascida, de renome e dimensão universal. A primeira história é irrelevante, entretenimento, mas curiosamente mete Procurador-Geral, imprensa entusiasmada e comentários de partidos. Rouba tempo e visualidade, instantes, à novela principal – o fado da Crise - e traz a cena uma figura da política recente, multiplicando-se-lhe os retractos, de lacinho e camiseta burguesinhos a expurgá-la de contaminações proletárias anteriores, nos jornais e tempos de antena. A falta de programas de humor nas nossas TV’S e a sua duvidosa qualidade devem-se claramente a estas erupções de graça natural, arrasadoras da concorrência, que em qualquer momento podem ser A notícia nos nossos tabloides, jornais de referência e horas nobres. Qual será a próxima maravilha efabulada a brindar-nos este verão com contornos criativos tão geniais? Pelo sim pelo não tenham cuidado com as conversas sempre que o ar condicionado estiver ligado – vejam-lhe o prazo de validade - e se o tiverem ligado, ponham-no no máximo, para que o som do aparelho se sobreponha e proteja a confidencialidade da vossa conversa, certamente sobre a NATO ou uma Tomada confidencial da nossa Bastilha, ao Terreiro do Paço ou no Carmo.
A segunda história, esta de um ranking das Fundações – um tal júri conseguiu classificar negativamente a Fundação Gulbenkian, que é privada e que foi o nosso único Abril no tempo da ditadura, vanguarda da democracia e sustento de um Portugal moderno, culto e sábio - aproveita o amolecimento da tensão política para fazer avançar mais um passo a tragédia em curso, a conformação do país a um protectorado, lugar típico de turismos estrangeiros vários – gastronómico, paisagístico, litoral e rural, etc. - em que os museus, em alegre extinção, serão substituídos por novas burricadas, mui criativas. Em plena globalização o número significativo de notícias locais, de disparates nacionais identificáveis com a nossa singularidade – a do traço atávico, miguelista, agora dominante - é sem dúvida feito de verdadeiros campeões olímpicos da regressão cultural e um dado sistémico. Basta uma figura de relevo mediático abrir a boca para dizer uma qualquer coisa e logo a cadeia informativa se transforma numa novela instante. 
Desconchavo é: confundir intencionalmente instalações de ar condicionado com espionagem – a especialista do frio só agora se lembrou do que sabe ou sonhou há décadas – acto de imaginação infértil pois diz a sério o que poderia ser um guião dos Marx Brothers: o Chico e o Zeppo de dedos entre fusíveis, perdidos num emaranhado de fios e chipes, escondendo a foice e o martelo tatuados nas maçãs de adão, a montar um captador de conversas contra revolucionárias para o PCP fazer vingar a sua lucidíssima estratégia pró soviética – neste particular há que dizer que associar guerra fria com ar condicionado é de grande rigor político, o frio político e frio fabricado de mão dada, e que um PREC efabulado continua a pagar a factura de um sem rumo actual do país quando, em verdade, o país é de há décadas governado pelos partidos do tal centro móvel (agora à direitíssima) alternante, ora comes tu ora como eu, que o conduziram para o descalabro sabido pelas razões sabidas e que são as de que nos anos das vacas gordas do dinheiro europeu se construiu o actual sistema corrupto pela mão de uma classe de novos ricos que ascendeu cavalgando-o como instrumento.
Quanto à Casa das Histórias que fazer? Terão estes senhores do governo a mínima noção do que fazem? Em que ranking caberá um Júri que afunda a Gulbenkian e ataca Paula Rego? Estaremos condenados à mediocridade?
Curioso é verificar o SEC – Secretário do Estado da Cultura - afirmar que a exposição de Joana Vasconcelos em Versalhes tem de ir para o Palácio de Queluz.
Fernando mora ramos

domingo, 5 de agosto de 2012

Um maneta com fecho-éclair à velocidade do som


Um tipo pequeno e de pele branco suja, três dedos na mão direita, sem a outra, apareceu no meio da rua principal da cidade e alguns lembraram-se do dia em que nela tinha passeado um urso surgido do nada - de um circo, do Polo Sul, ali fugido do degelo ou com fome? O mais caricato foi, na Pizaria, ter comido as bolonhesas perfiladas ao serviço de uma festa de anos com bolo e velas, coisa obrigatória, de assoprar de uma vez, triste.
Ninguém sabia o seu nome e ele não abria a boca, que tinha fecho-éclair, zipe. Se calhar tem dentes de leite e não quer se saiba, pensava o Adam, o primeiro a dar com ele, ao ponto de ter feito uma história que começava “ fui o primeiro a vê-lo e era uma vez um tipo com três dedos”.
Tinha queda para cortar relva, pôr o lixo no balde certo e era veloz como um gato assustado. Alguns e algumas pediam-lhe para dar um jeito no jardim, também penteava rosas, tirava-lhes os espinhos um a um, redesenhava as folhas de uma camélia em círculo e os comerciantes – poucos – pediam-lhe para fazer recados. Corria como o som, igual à velocidade de um gato assustado.
Ouvia tudo mas não falava, não tinha cera nos ouvidos e tinha os lábios zipados pois entre eles luzia o que parecia uma fita metálica. Percebia o que lhe diziam e executava os recados na perfeição – o seu salário eram gorjetas e ninguém lhe dava cama, comida e roupa lavada, pois o seu aspecto não condizia com o ar que os normais achavam que os outros deveriam ter. Era mesmo um estranho, o que é ser mais que um estrangeiro e falava pelos ouvidos, pois respondia ao que lhe diziam com acções. Quem lhe falasse falava pelos cotovelos para ter a certeza de ser compreendido. Não era exótico como se pode dizer de papagaio azul ou de uma arara branca, era um dissidente, mistura entre um chimpanzé humanizado e um marciano nascido em Plutão. Adam é que prosseguia na história que escrevia: “Nascido provavelmente em Plutão, quem sabe, tinha no rosto uma tristeza inexplicável, como a de certas criaturas solitárias”.
Como era um bairro grande de uma cidade grande, com milhares de habitantes e casas habitadas e vazias, prédios altos de paredes escafiadas e descoloridas, uns a abarrotar e outros vazios de gente, vivendas com jardins por medida e casas entaladas entre arranha-céus, os poucos que o reconheciam, chamavam-lhe por conveniência Três Dedos, assobiando-lhe o nome, acentuando as sibilantes, trêssss dedossshh, como se faz ao gato ou cão, trêssdedss jáqui.

Profissão: gorjetas

O desgraçado maneta vivia de recados e o salário eram gorjetas, já sabemos isto não é Adam? Vai ali, leva acolá, traz-me isto e aquilo e mais aqueloutro objecto pontiagudo que parece ser, daqui de onde escrevo, uma tesoura de podar. Trazia tudo suportado pelos três dedos vivos e quando a carga a transportar obrigava o coto do braço maneta ajudava, a carga empurrada contra o peito, parede providencial – um peito forte tinha Três Dedos, de homem.
Era um tipo que nada teria de estranho se não vivesse entre gente toda normalizada, de tal forma que algumas pessoas eram iguais a outras como se se vissem num espelho e se copiassem umas às outras numa máquina de fazer pessoas: faziam os mesmos gestos e diziam as mesmas palavras pela mesma ordem como será na tropa e faziam isso sem que se percebesse quem dava essas ordens como na tropa há os comandantes, eram pessoas comandadas pela formatação das suas próprias cabeças.
O nosso mudo zipado – a fita metálica seria o quê?- não tinha semelhantes a quem pudesse chamar iguais, nem parentes afastados num canto qualquer do planeta, assim parecia, o que incomodava muito o Adam que na história escrevia: “o mudo deve ser órfão e os pais devem ter ido desta para melhor – frase que Adam aprendera com a mãe. Isso deu-se por certo no dia em que ficou maneta, o dia da tragédia”. Nessa altura Adam, o primeiro a vê-lo, escreveu o título da sua versão: “O mudo maneta vindo de outro planeta”.

Não tinha memória pensava Adam enquanto escrevia o título. Adam era na cidade e no bairro a pessoa mais interessada no caso e estava a investigá-lo por conta própria para que ninguém soubesse, tal como os polícias à paisana e os agentes secretos, que também fazem coisas secretas. A história dele era secreta. Adam desconfiava que Três Dedos fosse de outro planeta e assim escrevera, ou de outra Era, de uma Era mais avançada, como se viesse do futuro, o que havia pouco lá no bairro tal como se habituara a ouvir a toda a gente que falava: aqui não há futuro.

Este futuro que era raro passou a ser também o objectivo de Adam, caçar o futuro e distribuí-lo no bairro como um pão necessário, elemento do ecossistema urbano que, tal como os ecossistemas naturais necessita de equilíbrios, por exemplo entre salário e emprego, entre vocação e profissão, entre inteligência e hierarquia, entre relações e diplomacia, entre amizade e cultura, etc., – como se pode viver sem futuro?
Nessa altura Adam pensava que o futuro não era exactamente a linha do horizonte, linha que aliás não o atraía mais que o arame sobre o qual um equilibrista famoso fazia a travessia entre duas janelas ao nível do segundo andar, isto é, atraía-o como outras coisas impossíveis o atraíam – que há de mais empolgante do que tentar o impossível? Voar, por exemplo, não era impossível? E não há um suíço que voa e não é um queijo e tem mesmo asas?
Este equilibrista urbano – também escalava prédios aos Domingos - e o maneta mudo Três Dedos eram aliás as duas criaturas mais inesperadas do bairro e as únicas que para Adam tinham poesia pois faziam coisas inverosímeis, inesperadas e belas sem necessidade de as fazerem a martelo – quer dizer, meter um prego na madeira também pode ter a sua poesia gestual, mas voar ou viver numa árvore como as folhas é outra poesia. A poesia também não abundava, pensava Adam, que sabia que a poesia era diferente do futuro, pois habitava nos interstícios das escritas da pedra e despontava como erva daninha com a mais pequena gota de água tresmalhada. 

Amigos

Vivendo sozinho, infundia medo aos mais novos e os mais velhos usavam-no como um transporte de mercadorias, riquexó de duas pernas. Só atraía vira-latas e gatos de telhado, os caniches e outros quadrúpedes de colo rosnavam na sua presença. Os bichos domésticos tinham o tipo de reacções das pessoas normais que eram os seus donos, só que enquanto as pessoas normais faziam um esgar ao vê-lo, pelo menos os que não queriam recados nem ao preço da uva mijona, os animais expressavam a sua desconfiança com alarido específico, no caso dos cães ladravam em coro de tal forma que Três Dedos subia a uma árvore providencial - havia sempre uma à mão - à velocidade do tal gato assustado que corria como o som corre.

Claro que Adam nesta altura já tentara chegar à fala com Três Dedos para tirar a limpo se era mudo ou não, já que maneta era mesmo. E até o interpelara na rua várias vezes: de onde é que tu és? ao que Três Dedos dizia nada enquanto metia um dos dedos no buraco do nariz para tirar o que seriam macacos –ele também tinha macacos no nariz? De tanto perguntar e não obter resposta Adam respondia a si mesmo: “eu afinal sou de nenhum sítio e não de Plutão, é um planeta que se situa entre um beco e uma travessa, perto da galáxia do Imaginário, numa cidade sem casas nem janelas em que as pessoas têm todas três dedos e o número três tem uma estátua que todos veneram feita de uma areia tão dura como pedra” – Adam, como autor, assumia a voz da sua personagem, dava voz ao mudo.

E como se chamarão os habitantes de Nenhum Sítio? E Adam fazia estas conversas consigo mesmo enquanto olhava o olhar calado do maneta que, à primeira oportunidade, se esgueirava para o lado de lá da rua ou para cima de uma árvore. Mas Adam não desistia de tirar nabos da púcara pois não gostava de ficar por saber aquelas coisas que a curiosidade mandava que fossem descobertas. Tinha descoberto isso no jogo das escondidas. O que é que se faz nas escondidas? Descobre-se o que está escondido. Ora a realidade tem muitos escondidos por descobrir, tal como as pessoas.

Circo

Três Dedos era um acrobata espontâneo, à força de subir árvores e paredes fazia-o com arte, os dedos que tinha faziam milagres de destreza e figuras de contorcionismo impossíveis, geometrias, triângulos e até um meio círculo com o dedo do meio de ponteiro da velocidade – sem saber porquê Três Dedos que pensava muito mesmo sem falar punha os dedos nessa posição de mostrador da velocidade quando fugia para cima das árvores para ter uma noção da velocidade da fuga: era um espírito científico no corpo de um palhaço-acrobata de circo.

Era muito imaginativo, capaz de fazer o pino com os três dedos, assim de estaca, espetados na areia dura, ou de se pendurar de um ramo alto a fingir que era uma preguiça ou um macaco ou uma cobra. As preguiças fazem o máximo que podem, para fazer o mínimo que querem, ou melhor, para não fazerem nada, o seu ideal de vida é o quietismo, a imobilidade absoluta. Como deve ser difícil ser preguiça e estar imóvel, mais imóvel que o homem estátua da rua de cima a quem a câmara municipal devia rodear de um laguinho com água e peixes?
Foi por esta altura que Três Dedos e Torres de Pisa se conheceram – ele era Torres por ser alto e era alcunha, mais um sem nome próprio assim baptizado pelos normais, nenhuma água benta e muito sarcasmo. O equilibrista também não era de falas e se não lhe perguntavam nada não falava – só respondia, não perguntava nem correspondia a nenhuma conversa nem com ah’s e hum ãhm e mesmo sequer um ok. Uma parelha das boas: um maneta mudo e um equilibrista que não usava palavras. O que é facto é que se entenderam logo. É uma coisa que acontece aos deserdados. Um deserdado torna-se amigo de outro deserdado muito facilmente. Também se vê isso entre alguns vira-latas. Como eram dois seres aéreos, um equilibrista e outro que sobe árvores, rapidamente se entenderam e talvez fosse justamente a partir desse contrariar da gravidade genético, com segredo e comum. As pessoas juntam-se por vocações que sentem e elegem. Este fenómeno foi observado por Adam que escreveu: “e o equilibrista chegou-se ao mudo e abraçaram-se num pacto de amizade, nessa altura passou um autocarro de dois andares que fez sobre os dois uma sombra alongada e funda. Nessa sombra, depois de se abraçarem, o maneta estendeu os três dedos ao equilibrista em forma de tridente e este fez imediatamente o pino, o pacto estava feito”. Usavam uma linguagem acrobática. Se os normais levantam um lenço para dizer adeus a uma pessoa chegada que parte num barco ou num comboio, estes falam através de pinos e fliqueflaques. Eram aliás os dois excelentes a fazer o pino, posição em vias de extinção tal como a sardinha. Ora os dois fizeram amizade e sabe-se lá se esta amizade não levará Três Dedos a abrir o fecho éclair e atirar palavras da boca para o mundo?

Amnésia ou Alzheimer?

Estranho era que Três Dedos não soubesse nem se lembrasse mais que aquilo que a sua mão contava, os três dedos que tinha, a mão que não tinha, nem mãe, nem pai, nem natais, nem quarto nem lâmpada de tecto, ruas conhecidas, escola com telhado ou tabuada, apara-lápis, primeira, segunda ou terceira classe, uma surra histórica de um amigo bruto, nada, nem um bibe antigo ou a cadeira da papa. Era como se fosse bicho da selva, um orangotango com infância desvalida, não um orangotango não, uma doninha ou um javali ou mesmo um lince – eram coisas que Adam pensava quando acordava.

Porque seria mudo? Pode-se ser mudo por não começar a falar cedo, no berço? Por não se dizer papá ou cão ou papa antes de começar os primeiros passos. Era bem verdade que, como agora lera, uma rapariga russa criada com vacas mugia como uma vitela. Se eu tivesse sido criado com lobos uivava, pensava. E um humano humaniza-se pelas letras e animaliza-se pela falta delas. Mas o maneta mudo era simpático e delicado. Um selvagem pode ser delicado? Ou teria um trauma e perdera a língua. Tinha língua? Não se sabia, pois nunca abria a boca. Era um grande mistério. Solução? Levá-lo ao dentista: eis o que Adam tramava se um dia conseguisse desviá-lo do trajecto de um recado para a cadeira do dentista.

Nem a falta de uma mão e sete dedos tinha história conhecida. Quando gesticulava uma explicação, o maneta fazia sempre o gesto de alguma coisa que o atropelara com o braço que sobrava, mas como é que os perdera realmente, o que lhe tinha acontecido, fora mesmo atropelado? Ou caíra de um pinheiro em cima de uma rocha aguçada ou fora atacado por uma alcateia de lobos famintos ou fora apanhado por um raio que o atravessara num desses tornados americanos que dão na televisão e que levantam casas como pétalas? Ele nada, nada mesmo, não se lembrava de nada. Seria um caso de criança selvagem auto-domesticada como o homem fizera aos primeiros animais e em particular à vaca e ao seu marido boi? Mas então como era capaz de fazer alguns gestos e fazer recados de uma inteligência mais que animal?
Não tivera adolescência? Mas que idade ele teria? Ninguém sabia. Parecia muito novo e parecia também muito mais velho, tinha muitas idades, não era como as outras pessoas que só têm uma idade. Será que quando se cresce algures, em terra de ninguém, temos várias idades? A idade animal, a idade humana e a idade de se ser vadio e morar em árvores? Os animais não fazem anos, nem têm velas nem bolos de anos. Ora as pessoas têm anos e velas e bolos de anos. O Três Dedos não ligava nada a isso, o que ele não dispensava era depois de fazer muitos recados, por exemplo depois de transportar caixotes de batatas fritas, de que ele não gostava por causa do cheiro a óleo frito, fazer a sesta num galho que conhecia bem, conhecia bem porque tinha feito nesse galho a sua casa, ou cama casa, como os pardais fazem ninho. Levara para esse galho um colchão de praia velho. Não era bem um galho era mais um cruzamento de galhos, uma encruzilhada de galhos e eram galhos que não partiam, de vime, galhos de torcer sem quebrar, assim tão elásticos como ele. Ele era mesmo elástico, ao ponto de em pequeno chuchar no dedo polegar do pé esquerdo pois não tinha nenhum dos dois polegares das mãos, o que fazia pensar em macaco pessoa a qualquer observador. Mas não vimos nós do macaco? Não somos todos macacos, uns mais que outros?

Estrangeiro ou aberração? Entroncamento à vista 

Alguns antropólogos de bairro, treinadores de bancada, começaram a pensar que Três Dedos era uma mutação específica, clara mistura de pessoa com animal, pássaro ou macaco, daí a paixão pelas alturas e pelas árvores. As árvores pareciam para ele parques infantis e ele fazia tudo nelas, escorrega, baloiço, pendurar-se, equilíbrio instável, punha a cabeça para baixo e as dobras interiores das pernas no ponto dos joelhos a fazer de gancho num galho mais forte - para ele, escrevia Adam, “qualquer árvore era um mundo que permitia ver de cima as coisas e estar mais perto do céu, de que gostava muito, pois estava sempre a mudar, como uma pintura, ora azul, ora vermelho, ora zangado de nuvens cheias de cinzento-escuro, ora suave com fundos cor-de-rosa avermelhado, que não eram nada como os cor-de-rosa das prendas, a beijar longamente a linha do horizonte no mar lá longe.
Quando tudo fica preto, quando há um apagão, afinal só podemos ver para dentro, era uma coisa que Três Dedos sabia muito bem, era também um grande observador do seu interior, de tal forma que via mais do que o seu intestino ou coração, via mesmo paisagens e versos a fugir pelo corpo acima, algumas palavras a instalar-se na pálpebra e a dar-lhe sono, como a palavra dormir. Nessa árvore que era casa e mundo Três Dedos tinha uma vez atingido o ponto mais alto, não podemos esquecer que era uma espécie de pinheiro e nesse ponto mais alto tinha feito um pino lateral sobre os três dedos, em cruz, como uma antena de TV, o que só o céu observara pois não havia espectadores no chão. Três Dedos falava com deuses, ele sabia que havia deuses e que eram gregos. E por isso quando havia trovoadas ou as nuvens se moviam muito ele dizia sempre para si que havia problemas, que Zeus se zangara com algum dos outros ou que havia sarrafusca entre os mais novos, entre Hermes e Atena, ou assim, nomes que conhecia de cor sem saber porquê, estavam no código genético. Seria grego?

Entre Zeus pássaros e lagartos

Ele não se lembrava de nada da sua vida, como um pássaro não se lembra, mas sabia coisas como estas dos deuses gregos, sabia que Zeus tinha uma barbas tão grandes que só podiam ser eternas, como o mar é eterno e a matéria. O mar não é eterno? As barbas de Zeus faziam pensar naquele feijoeiro que subia tão alto que era uma escada improvisada para o Olimpo, muito maior que o tronco que levava Romeu à varanda de Julieta, que também era grande. Quantas alturas de troncos de Romeu tinham as barbas de Zeus? E Zeus tinha estas barbas mas também as fazia desaparecer com um gesto, era visível e invisível, tanto se sentava num trono de nuvens como se fundia com o mar ou com o ar. Era omnipresente e omniausente se lhe apetecia e era muito de apetites embora não necessitasse de comer - os deuses mesmo a sério não comem e podem nascer a meio de uma perna, Zeus paria outros deuses a meio da perna, ficava grávido das coxas quando queria.

Estes assuntos, do parágrafo acima, não sabia Adam que o maneta mudo pensava. Na realidade era mesmo a única coisa em que Três Dedos pensava, o resto das coisas fazia, porque a proximidade do céu dera-lhe para ali em vez de lhe dar para colecionar estrelas, planetas e nebulosas, formações luminosas que olhava como familiares, como se tivesse sido posto ali por um cometa ou tivesse aparecido na garupa de uma estrela cadente. Teria caído de uma estrela como os pássaros caem dos ninhos? Tudo interrogações que adensavam o mistério das origens de Três Dedos que se sentia mais pássaro que outra coisa qualquer, voador e que fizera o ninho por pura intuição genética, tal como as crias de urso vão directamente aos peitos da mãe pois sabem que há lá leite de ursa.

Sentia-se pássaro e portanto agia muitas vezes como se o fosse, quase voando quando corria e amando as piruetas como as andorinhas e pousar nos fios eléctricos como as rolas – as cegonhas é que são maradas fazem casas nos postes de alta tensão. Mas mais uma vez uma grande diferença o isolava: não chilreava, nem piava, nada. Já alguma vez perguntastes a um pássaro de que nacionalidade era ou se gosta de cosido? Não, os pássaros têm outra visão das coisas, uma visão de cima e de cima espreitam migalhas e minhocas, formigas, outros são carnívoros mas além disso fazem voos pelo prazer do voo, desenham no espaço, disputam a atmosfera às nuvens.

Três Dedos não se lembrava também de outras partes do que a memória de cada um arranja para sabermos quem somos, nome, data de nascimento, altura, peso, cor dos olhos, nada – ele dizia para si: sou o que respiro, pássaro na alma, transmigrado de bicho aéreo e caído dos céus numa encosta esquecida do mundo, filho das estrelas – ele tinha qualquer coisa de poeta como sabemos, Três Dedos inventava-se a si mesmo e todos os dias parecia poder ser uma variação do que era, tal como os deuses gregos que se especializaram em mutações.
Mas não se dava com lagartos, não apreciava o seu dom rastejante nem gostava das bochechas inchadas de alguns quando se zangavam. Abria uma excepção para o camaleão que, finalmente, para lagarto era um pouco fora da regra pois mudava de cor e tinha uma lentidão maior que a da lesma. Sim, simpatizava com os camaleões e pensava que eram todos míopes, de olhos fora das órbitas, quase cegos, ou a parecerem cegos, como os olhos dos cegos, muito fixos e grandes quando existem.

O expresso estafeta

O serviço prestado como estafeta era eficiente: Três Dedos era um dos mais rápidos paquetes da região. O que lhe faltava para manusear sobrava-lhe em músculo e velocidade de perna, conhecidos os trilhos urbanos como um chofer de táxi, becos, travessas, carreiros mais que ruas entre prédios a beijar-se de se inclinarem como a torre de Pisa e somada uma capacidade invulgar de manter o ritmo na curva mais apertada – um atleta olímpico, um génio da alta competição. À extraordinária mobilidade aérea, esse pássaro interior que o habitava juntava-se o velocista e, característica inesperada, uma capacidade de equilíbrio nas curvas que o tornava um estafeta sem despistes e um concorrente dos distribuidores de pizas motorizados, todos eles campeões de rotas urbanas.    

Os dedos sobreviventes eram o indicador, o mindinho e o polegar. Como não tinha os outros dedos, sem se saber porquê, os que tinha cresceram mais que ao comum dos mortais e mesmo o mindinho era grande, quase o indicador de uma pessoa normal. Podia apontá-lo acusador que surtia efeito, o tamanho a acompanhar a ameaça. A cidade já não sabia viver sem este paquete pois era uma cidade em que havia muitas trocas comerciais e muita coisa comprada pela internet que não era virtual e necessitava transporte. Três Dedos derrotava a concorrência sem saber pois cobrava só o que lhe davam, não fazia preço, não tinha a noção do dinheiro e como não comprava nada, tinha o que queria, para além do ninho e velocidade nas pernas, pois respirava bom ar nas alturas e visitava o equilibrista na casa circo em que morava. Ele era explorado pelos que o usavam mas não sabia. Nas empresas de transportes surgia agora uma vontade de o liquidar, de o fazer desaparecer e havia quem quisesse pôr pregos nos seus trajectos habituais para ficar com as plantas dos pés em ferida. Mas Três Dedos era esperto e tinha uma visão de pássaro, o que lhe permitia também ver tudo na sua rectagurada.

Entretanto Adam prosseguia a sua história de era uma vez um maneta e decidira levar Três Dedos ao dentista, coisa na realidade quase impossível: por essa altura a vontade de muitos de que falasse tinha feito com que o dentista lhe propusesse uma consulta gratuita ao céu-da-boca, dito assim para disfarçar o verdadeiro interesse: teria ou não teria palavras na boca?

No dentista

Três Dedos na cadeira do dentista sentiu-se preso. Este foi buscar uma espécie de alicate para lhe abrir a boca. Ao ver o instrumento abriu a boca e percebeu-se que tinha um céu-da-boca azulado e que além dos dentes, que eram muito pequenos e tinham serrilha, o que era mais estranho era que tinha duas línguas, uma de pássaro e outra de lagarto, a primeira parecida com uma língua de pessoa e a segunda muito comprida. E foi esta língua que se soltou e logo caçou uma mosca que estava na parede do consultório. O mistério parecia desvendado, ele era um híbrido de insecto com bípede. O zipe tinha uma explicação: ele não gostava de soltar essa língua insectívora que o atormentava. O dentista percebeu logo o caso e fechou-lhe o zipe. A língua comprida tinha de estar na gaiola pois ele não a controlava, ela não respondia às ordens do cérebro, tinha vontade própria e uma paixão frenética por insectos. Não acontece o mesmo aos que têm bulimia? Não comem tudo o que vêem? E Adam prosseguia: mas como é que ele então digeria os alimentos? Era quase inexplicável esta questão. Mas logo surgiu uma hipótese de explicação: as línguas também dormem e provavelmente quando a língua comprida dormia ele comia com a outra abrindo um pouco o zipe e comendo alguma gorjeta que fosse paga em géneros. 

O A B e C de um voador

Mas se afinal abria a boca também certamente podia emitir sons e palavras, como qualquer falante, pois quem tem boca aberta vai a Roma. Nunca ninguém o ouvira embora houvesse uma senhora que uma vez parece tê-lo apanhado a dizer ornitorrinco para si, muito baixinho, numa altura em que a sua língua insectívora dormia, assim para dentro, como quem rega um jardim interior de palavras especiais, para cochichar a si mesmo, como por exemplo dizer a expressão: esdrúxulo sentido apaladado, ou a palavra ergonomia ou laparoscopia ou um latinório daqueles que deixam uma mostarda estranha nos lábios ao lançarem-se como acontece com quosque ou tandem e quid.

Faltavam-lhe dedos mas sobrava-lhe curiosidade e o mundo das palavras era nele interior, como o coração e outros órgãos. O seu objectivo nocturno era construir um dicionário íntimo, somar palavras numa ordem apenas sua, fora de qualquer lógica alfabética, associando palavras imagens, como essa de Ornitorrinco a que poderia juntar por consonância rítmica trrinco e inventar Torrinco, a capital da Torrinquia, um país independente um dia destes, ilha ou península, coisa gerada pela placenta oceânica. De noite Três Dedos aproveitava os que sonhava e nos sonhos pensava com muitas palavras. Ora como as guardava para si e não as deitava para fora do corpo era como se o dentro dele fosse esse dicionário que ele queria ser além de ser pássaro e velocista. Era um estranho ser: atleta, misto de pássaro, macaco e lagarto – a língua finalmente denunciara essa co-origem – e finalmente guardador de palavras, um diccionário bípede íntimo, um sonhiccionário.

Um sonho

Muitas pessoas não sabem que Ornitorrinco é um animal, pensam que é uma adivinha, uma palavra para entreter bebés com dores de dentes. Diz-se Ornitorrinco as vezes necessárias e a criança esquece o dente a nascer, coisa assim, também se usa Nabucodonosor, mas essa palavra resulta mais em casos de aperto intestinal. Orni, para os amigos, um bicho especial, como o papa-formigas, a preguiça, a doninha e as toupeiras, de que se fala muito mas que nunca se veem. O ornitorrinco era paixão velha, descobrira-o num cromo esquecido que lhe deram como gorjeta, bicho com bico de pato, anfíbio e põe ovo, cruzamento entre espécies, tal como ele, mistura de pássaro, atleta urbano, lagarto e diccionário.
O Três Dedos, dizia-se, que se calhar falava ornitorrinquenho, a linguagem dos ornitorrincos, difícil de adivinhar pois não havia ainda nenhum gravador que tivesse apanhado dois ornitorrincos a falar um com o outro, nem sequer no acasalamento, a supor que faziam sexo baixinho, sem gritaria, ou que usavam massa consistente para atenuar os ruídos orgânicos – a função da massa consistente é essa, pôr o osso em banho de óleo para não fritar no osso com que faz articulação.
Portanto o ornitorrinquenho era uma língua oculta que nem na Torrínquia se falava, apenas nas tocas onritorrínquicas, como acontece com outras línguas subterrâneas que só se falam no coração do planeta e ainda outras que só se falam mesmo no seu umbigo. Quer dizer: no umbigo fala-se umbigues, mas também se desconhece se algum gravador lá chegou pela mão de uma broca infinita. A que distância estará o umbigo do mundo da planta dos pés de um terrestre de pés assentes?

No princípio era o Entroncamento

Mas tudo começou assim diz a prima ciência que até agora esteve caladinha: o Três Dedos veio ao mundo sem pai nem mãe, nem outra família, nasceu do acaso, do cruzamento de uma estrela cadente com um tubérculo – esta tesa defendeu-a um rato de laboratório muito experimentado na relação entre a astrofísica e a influência cósmica nos estranhos acontecimentos recorrentes no Entroncamento, uma vila portuguesa plantada num cruzamento de linhas de comboio – fora vista uma estrela minúscula, parecia quase a ponta de uma lanterna vertiginosa, a casar com uma batata que virou foto, dado que sorria e dizia “eu sou amiga do amido e tu a minha varinha de condão” antes de esbracejar como um gavião, batata com asas.
Outra tese: que foi visto a boiar num alguidar vermelho num rio que só os espeleólogos conhecem, um rio nocturno e fora salvo por um mamífero voador dessa gruta que o tomara por um dos seus e o amamentara.
A tese da proximidade parental com o Ornitorrinco, bicho capaz de correr os teclados de um piano desprevenido em noites mais quentes, radica na própria memória genética que tinha, que era a única pois não tinha a outra – essa resultou da explicitação e um teste de ADN feito ao ABC que se percebia que também tinha.
Enfim, as teses surgiam como cogumelos.
O mais curioso foi que criaram um Instituto para a Investigação do caso dele, o Instituto Três Dedos.

Milagre genético

E deu-se então algo excepcional. No dia em que adormeceu com o toco do braço enfiado numa ferida do tronco em que habitava, o braço, pela manhã, crescera e parecia um braço normal, assim como apareceram cinco dedos, ainda pequeninos, dedos bebés, primeiro o mindinho, depois o polegar, a palma da mão e os três dedos centrais e tudo como nas plantas que sofrem enxertos. Voltara vida ao que parecia morto e surgem também no corpo pequeninos troncos, folhinhas e por aí adiante. O lado vegetal de Três Dedos desenvolve-se. E as ervas convertem-se em pelos e os pelos em pelos humanos. Era um híbrido de pessoa, era provavelmente um filho da árvore em que vivia.
Por essa altura já a ciência dizia que o bosão de Higgs era o começo do universo e que tudo era diferente do que se pensava a começar pelas catedrais que, na realidade, eram afinal realizações do medo.

A história de Três Dedos não acaba aqui. Mas nada se soube mais.
Oque se sabe é que fugiu com Torres de Pisa para um outro território e por lá ficaram a construir um mundo sem recados nem gorjetas, um mundo em que se faziam muitas experimentações e voos, um mundo que usava os céus como se fossem um papel em que se escreve com asas. 

Final feliz
E FIM – ouvem-se ao longe, na linha do horizonte, aplausos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

METEODRAMÁTICOS

A notícia meteorológica vive umbilicada com o tempo psicológico. Desde que é economia mediatizada do consumo e seus ditames weekendianos gera instabilidade, dados científicos vividos com humor bipolar, a natureza logo mitificada a partir do que a esclarece, a previsão a funcionar como totobola. O incauto consumidor de meteorologia, num mal-estar de impotência acrescida vive a novela do tempo em heterónimo meteo-paranóide, ao sabor das suas viragens, deus irascível ou assassino armado de ultra violetas. O candidato a bronzeado, esponja e camaleão, acrobata de mimetismos atmosféricos, vira barómetro existencial – nunca fomos tão colados à nossa pele.
A história é: nada do que acontece é sem mediação, quando presenciamos algo o filtro das nossas noções e humores faz o seu trabalho de interpretação. O que presenciamos tem também uma escala para além dos limites da percepção. O que nos chega deriva de, foi ou será consequência de um complexo de causas que nunca perceberemos sem instrumentos de mediação – medição - científicos.
Paradoxalmente, na sociedade do espectáculo, a mais científica descrição do estado do tempo transforma-se na mais irracional reacção na recepção consumista. A ciência gera o seu contrário: o medo e a confusão, a decepção. O desejo narciso alimentado pelo grande educador publicitário - a grande escola - não suporta o não, a dor é na biopolítica geral um sucedâneo indesejado, dano colateral, mal vivida e nunca aprendizagem.
O tempo trai-nos com a sobreposição dramatizada dos climas noticiosos, capazes de pescar nas águas instáveis do nosso sentir instante, sensível ao alerta amarelo hoje, Algarve devastado amanhã – ouve-se a meteo e faz-se uma trip alucinada com incêndios, praias de hora de ponta sôfrega desertificadas num ápice.
A anunciada vaga quente e seca que veio mesmo, qual Sebastião realizado, após semanas de tempo inseguro fora do tempo, tempo indesejado, aparece como um excesso que não corresponde à expectativa estival e contraria a fome de ter o bom tempo, já que a crise instaurou um outro mau tempo permanente - ao menos que o sol não seja austero nem imponha imposto, além do Iva do creme.
Somos animais em perda de corpo que não de capacidade predadora e violência ilimitada, agora de controlo remoto a coexistir com o corpo a corpo, drones no Paquistão e guerra de rua em Damasco.
A verdadeira novela do tempo, extrapolada do anúncio meteorológico, ligou recentemente uma calor excepcional a uma descida abrupta da temperatura – põem-te a cenoura diante do olho e prometem no mesmo gesto a chegada do pau, o tempo de gozar é mais efémero que efémero, tens de o correr.
Ninguém tem mão no tempo, nem o pentágono nem os chineses; que saudades do tempo em havia quatro estações, infância da humanidade. 
Tudo isto não é inocente mesmo que não exista por detrás conspiração que possamos traduzir por nenhuma teoria, a não ser aquela que diz que estamos a destruir o planeta pela via do aquecimento global.
Em boa verdade o tempo está doente e nós doentes do tempo, em consonância cósmica e psicologia diária. E o tempo determina tudo, principalmente o que as indústrias do espectáculo, do lazer e do corpo vendem, adrenalina no máximo, fins-de-semana sem nenhuma adrenalina, escapadelas, emigrações massivas estivais, fugas solitárias acompanhadas de outras fugas solitárias e outras práticas induzidas ao milímetro, mas também práticas com estatuto existencial mais remediado, ir à praia na Cruz Quebrada, por exemplo.
Muito se passa no trânsito condicionado e orientado entre a indústria comunicacional de eventos atmosféricos e os modos de os receber. Nas estradas da comunicação não há ciência que resista, os limites da divulgação científica estão aqui assinalados, a qualidade da informação original degenera pela ansiedade da recepção e sua capacidade de dramatizar ficcionando, de modo mais ou menos vulgar – por isso a ciência ou a arte são exercícios que necessitam de condições de significação elitistas para todos, necessitam da generalização dos teatros de câmara contras as dimensões circenses da comunicação massiva.
E continuamos sem saber cientificamente – a novela da ciência também é alimentada, tudo tem de ser sensacional, espectáculo e sem ele nada existe (in vídeo veritas)- o que é que a governação do planeta, o sistema de interacções dos verdadeiros poderes, financeiros e políticos, têm na verdade feito sistemicamente do ar que respiramos, da nossa água, da nossa vida, do nosso futuro.

fernando mora ramos

Qualidade de vida e código laboral

O ar ufano do ministro da economia a referir-se ao código laboral aprovado só pode comparar-se ao de quem só tem prazer com malfeitorias, sinal de perversão mais que de contentamento pela suposta eficiência económica da medida – ser neoliberal é um excesso de normalidade, uma monstruosidade? Num país de salários miseráveis, de que nunca se fala, ou melhor, de que só uns falam como se os salários não fossem números e comparáveis com os salários praticados noutros países e portanto um dado relevantíssimo da economia como vida real, os argumentos para se tomarem medidas económicas têm sempre a ver com a economia e nunca com as pessoas, como se a economia não fosse um instrumento da vida. A confusão estabelecida entre os meios, convertidos em finalidades e as finalidades, instrumento dos meios, prova como a ideologia neoliberal se seduz pela estatística e pelas suas variações, mas não quer saber do que nas estatísticas é gente viva. Quinze, vírgula, uns tantos por cento de desempregados não são relevantes, relevantes são os zero, vírgula, dois por cento que se desçam. Que esses 0,2% que se descem se devam a emprego temporário, sazonal, como agora no Verão, não é relevante. Que os salários reais desçam porque as horas extraordinárias passam a metade do valor, não tem importância, nem se lê como mais lucro do patrão, importante é dizer que com menos salário os patrões vão empregar mais gente, como se isso fosse mecânico e verdadeiro. Mais gente com menos salário, salário que já não suporta as despesas familiares, não é relevante, nem se caracteriza por generalizar a miséria, nivelar por baixo, isso eram os socialismos reais, falanstérios. Não, o horizonte das sociedades neoliberais não é esse, é outro, é o de criar oportunidades individuais, generalizar a precariedade que é estímulo à criatividade individual: o faminto é por natureza inventor e o inventor é automaticamente um investidor porque inventa horizontes empresariais e novos produtos transacionáveis. Donde: generalizemos a precariedade e no horizonte teremos o amanhã que canta neoliberal, os despedimentos são a via do desenvolvimento. Pela conquista da miséria se atinge o paraíso, o self made man saído da miséria em direcção aos céus da riqueza é o Novo Homem, protótipo.
Nunca um projecto de governação foi tão ideológico em nome de uma espécie de naturalização da economia, como se esta fosse uma selva aceite pela via da inevitabilidade da força incontrolada dos mercados e os cidadãos, os regimes que se autonomeiam democracias, uma variável aceite, qualquer coisa que pesa apenas como valor estatístico, indicadores.
Neste grupo neoliberal encontramos neoliberais puros e duros, estritamente ligados à alta finança e conselhos de administração, falam a linguagem da taxa, encontramos outros que se dizem democratas-cristãos mas que nem se lembram do rosto de Cristo na cruz e outros foram sociais-democratas e têm uma noção da social-democracia completamente afastada de um papel equilibrador do Estado em matéria de igualdade e liberdade, direitos sociais e acesso equivalido às mesmas oportunidades para todos.
O para todos desta gente é um para todos que cada vez mais contribui para a elitização da elite – a que não dá a cara e lucra exponencialmente – e para o enriquecimento, alavancado na governação diria, de uns tantos novos cada vez mais ricos que estão de passagem no poder, testas de ferro dos primeiros e dispostos a tudo para realizarem as suas teses dogmáticas – a tal certeza absoluta da via - na realidade tão absurdamente justificadas por lógicas finalistas como os comunismos de caserna que a história provou possíveis. O extremismo tomou conta do poder, um novo terror apoderou-se do Estado. Nada os demove, nada os comove e são todos pais de família candidatos a santos. E se resta nesta democracia aquilo a que o simulacro obriga para parecer o que não é, que é alguma coisa, isso se deve à irredutibilidade portuguesa, identitária, que, como Bartleby, não entra em falsos consensos de normalização pseudo estabilizadora. Não se pode rumar um mesmo rumo em que uns vão parar ao abismo e outros às Caraíbas.
fernando mora ramos