segunda-feira, 24 de setembro de 2012

As tetas da princesa

Agora diz-se top less mas sabemos que o top é prótese e as mamas, da pessoa, enquanto forem. As mamas da princesa são reais, monárquicas, devem ser olhadas portanto como os reis eram, como que tendo um sinal impresso da sua origem divina, o holograma real da distância de classe. As mamas são de algum modo mais que criação de um deus ou de Deus, a expressão da sua ordem na terra, da sua desordem. As mamas da princesa devem ser respeitadas como outras partes do corpo da princesa, o cu por exemplo para não falar da pachacha, por exemplo. É inimaginável ver-se toda a família real em biquíni, principalmente o príncipe, mas também a rainha – o que seria da rainha com biquíni, seria ela mesmo e logo o epicentro do seu próprio tsunami. Aliás o biquíni já é um modo de retirar à monarquia o seu carisma real, de realeza e colocar essa aura pelas ruas da amargura ou mesmo entre as filas intermináveis de praticantes de bronzeado. Essa é a hora de ponta específica do verão e faz tão mal como a batata frita, sendo portanto uma prática generalizada, ao contrário da missa que tem muitos não praticantes. A monarquia tem de andar sempre de gola alta mesmo que seja no pino do verão, disse o Monsenhor Lefebvre – não confundir com Henri Lefebvre - ainda lúcido. É na gola alta que está o pedigree que não é nome de cão. Aliás deveria dar o exemplo e no pino do verão, por assim dizer, cobrir-se de golas altas dos pés à cabeça. De facto esta história é chocante, a da princesa de mama ao léu, e não apenas para as revistas das coisas chocantes que por assim dizer relatam a humanidade dos grandes como um futebol de desamores, quer dizer, relatam naquele sentido de que humanidade e disparate se conjugam e também naquele outro de que humanidade e mediocridade também se conjugam amiúde - é uma palavra que temos de usar, amiúde, não há dúvida que a repetição é a nossa condição e não falo de répétition, que é um fado meu, falo mesmo de acordar todos os dias. 
Esta problemática das mamas, como a de qualquer parte do corpo, mas esta em particular, associa-se a coisas graves e a coisas menos graves. E obviamente à beleza. Ainda não ouvi um comentário à beleza das mamas da princesa nem às mamas em si, só se lêem comentários ao top que estava less. Mas nem ao top em si há comentários, porventura porque seria publicidade encapotada, o que essas revistas passam a vida a fazer, nem fazem outra coisa. Creio que neste assunto das mamas se estivéssemos em período eleitoral a princesa ganhava, mesmo que não fosse numa percentagem votante a pensar grande - poderia ganhar digamos nos pesos leves, se houvesse essa categoria no campeonato mamário. De qualquer forma as tetas são duas, o que por exemplo os homens podem dizer dos testículos, são dois, mas não podem dizer da gaita. E os testículos, mesmo em top less, nunca terão a beleza de um par de seios, têm aquela costela amarfanhada pentelhuda e ainda não há que lhes meta silicone – não tardará claro e chamar-se-ão as bolas de borracha sub-mastro, para usar um termo naval que, entre nós, é recorrente desde Vasco da Gama.
Mas não esqueçamos que as mamas são um órgão vital, amamentam e quando não começamos por aí a nossa vida exterior, quando abandonamos interior e a placenta nos deixa, mesmo podendo fazer o nosso caminho sem relação directa, labial, com a mama, parece que se fica sem as resistências adequadas e certamente sem o que na escola de chupar faz a diferença entre a consciência real de um mamilo e a de uma borracha – se fizessem isso com os gelados, se lhe tirassem leite e fruta, cacau, o que aconteceria ao planeta verão? A borracha é um progresso, como o top aliás. Sabemo-lo.
Estou a pensar na princesa agora com fio dental ou mesmo sem fio dental. O que seria mostrar a ausência do fio dental? Os fotojornalistas de coisas íntimas e ínfimas só sonham com isso. Mas mais escandaloso seria mostrar os intestinos da princesa através de uma ecografia intestinal clandestina do tipo sensacionalista, isto é acrescentado rosa ao rosa intestinal através do fotoshop pluricromático. O que nos diria o intestino da princesa de especificamente monárquico? As suas voltas seriam como as ameias da coroa que lamentavelmente usa pouco? Eu acho que a princesa deveria usar gola alta, coroa e não abrir a boca para não mostrar o céu-da-boca real. Esse seria o comportamento adequado. Não é ela princesa? Para que se meteu a top less? Será porque uma princesa inglesa só poderá fazer top less por serem palavras inglesas? Se estivesse com as mamas à mostra e não em top less não se passava nada. As pessoas diriam: está com as mamocas de fora e mais-nada, ou então, as mais conservadoras diriam, não tens dinheiro para o soutiã?
Não quero lembrar as coisas tristes em relação às mamãs e porque atraem as mamas doenças mortais. Porque exactamente são fonte de vida e dor é aí que a morte ataca. E a morte está-se nas tintas para o top less, não se vê muito esta senhora omnipresente e potente, nem a ler sensações, nem a frequentar painéis publicitários, não desmorde da sua coerência nem do caminho implacável que traça para cada um. Esta questão também são mamas, as mamas de que todos vivemos e que deveríamos, mesmo as mais banalizadas pela sorte do flash – as tratadas a preto e branco sem flash nem digital são as mais artísticas claro, com destaque para as tratadas a sépia - olhar com doçura reverencial (isto do lado da idade que em cada um faz cantar a memória de algo que já não pode ser memória sensorial, mas a imagem projectada disso para trás no tempo).
O que me choca mesmo é o silicone e pensar que muita gente faz amor, ou literalmente pratica borrachices, entre borracha e borracha. Bem sei que a borracha é dúctil mas também sei que não se eriça, que o que se eriça necessita de esticar a pele.
Olho para as mamas da princesa e fico triste, são muito pequeninas, como poderá ela vir a ser rainha? E eu até gosto de pensar naqueles que têm esse privilégio de todos os dias colher um par de maçãs sem que elas desapareçam. Oh Senhor: perdoai-me o disparate, será também Vosso e consubstancial?
fernando mora ramos

Primavera em Setembro, 15

Na realidade o clima está doido e a Primavera chega em Setembro. Mas não será assim que o real muda, sem que se perceba bem? De repente mudou e não mudo no momento da mudança, foi mudando após o momento da mudança. Não será a mudança dos paradigmas lenta, imperceptível? E as rupturas não serão portas abertas a um novo começo? E não será que tudo o que é vertigem se torna subterrâneo, menos visível e lento e depois emergente e emerso, visível fora de um tempo. Não haverá desconexão entre o tempo e a consciência do tempo? Estamos maduros para outro pulo, penso, um pulo para melhor. Este 15 de Setembro não teve tanques nem cravos em sítio de baionetas, mas teve por certo um modo de raiva claro, preciso de programa e a consciência de que pode de facto ser de outra maneira, há alternativa, a sua negação é um dos embustes ideológicos mais fascizantes que temos ouvido e é por isso que os álvaros e os cratos e os passos e os gaspares e os viegas, esses hipócritas, devem ir de cana. Vamos deslocalizá-los para o off shore neoliberal para se converterem em moeda de troca – se são criados servis do financismo, o melhor mesmo é convertê -los no que gostam, euro e câmbio, taxas, convertê-los em taxas de juro. E podem levar a naftalina toda com eles, mais a trampa que os molda e conforta, os popós de marca, os 32 do serviço ao Primeiro para dar a volta ao off shore, os neoliberais compram ilhas.
Interromperam Abril há tempo já significativo e instalaram uma democracia desqualificada e vulgar, uma ditadura com algumas subtilezas libertárias para o pagode que desejam em povo curtir distracções, um filme de série negra para 1 estrela. Os dinheiros europeus foram para os bolsos de uns tantos e os governantes servem esses enriquecimentos ilícitos de há muito, eles próprios só pensam em capitalizar quando acedem ao mando que podem – são mandantes mandados como sabemos. Eis o meu romance deste 15 de Setembro.  

José Fontana

Nem sequer lá chegámos, eu e a Lena, à Praça José Fontana. Ali, ao Saldanha, um rio lento de gente a sorrir levou-nos. E deixei-me ir, o ritmo conveio-me e fui logo tomado por um enorme sentimento de estar a ser corrente, um com muitos outros e não um na massa, um como um elo de articulação perfeita de todas as diferenças autênticas, não miméticas que “querem as suas vidas” – o objectivo despe-se de vocabulário ideológico e fala simples e claro, vidas em vez de não vidas. E o que serão não vidas no pico construído de uma sociedade rendida ao consumo? É o modelo que é questionado, as pessoas não se confundem com uma par de lentilhas exibível, a escola degradou-se a um ponto inimaginável, os transportes, os salários, os horários, as relações laborais, o ordenamento do território, o fosso entre os ricos e os pobres, o desemprego. Eis a não vida.
Deslizamos: carrinhos de bebé, crianças de metro menos que meio, ali de mão dada com o futuro, ali em baixo, a clareira fazendo-se para terem a porção de céu que os alimente de ar, deslizamos, homens, mulheres, mulheres jovens, mulheres e mais mulheres, este Setembro foram elas os nossos capitães, capitães tranquilos e determinados. Estamos juntos mas não amontoados, é uma gente compacta mas essa união é feita de delicadezas, nos olhares, na alegria contida, no à vontade dos corpos, nas palavras de ordem, na informalidade poética dos gestos, desprendidos – o cartaz da Viera da Silva veio-me aos olhos - nas palmas das mãos elevadas ao alto em direcção ao helicóptero que em directo mostrava ao país que éramos o imenso delta de um mar a crescer e a convidá-lo, a vir ainda, ao povo sentado – acenar ao helicóptero era acenar a quem nos olhava, fomos um milhão na rua e outros milhões nos ecrãs e noutras partes mais incertas, muita gente tem limites inultrapassáveis de mobilidade, não pôde estar mas esteve.
A marcha vai sem gritarias, nem histerismos, com convicção e disponibilidade para mudar mesmo, MUDAR, BASTA DISTO, o governo para a rua, a troika que se foda, professores, trabalhadores de todas as profissões, artistas, actores, jornalistas, electricistas, operários, donas de casa, donos de casa, desempregados, gente com muitas rugas, gente sem rugas, grupos de rapazes e raparigas, criaturas de meia idade assente, muitos outros na casa dos vintes e trintas, as vidas a tomar forma, frases à solta, um cão maior que o dono com um cravo na coleira, tipos com lenços da Palestina, buzinas e mais buzinas, uma orquestra de câmara de buzinadoras com um rapaz a solista agarrado à tampa de uma panela, cartazes de trazer como a mochila, frases em línguas de pano escritas sobre as nossas cabeças fazendo a largura da avenida – foram avenidas o que calcorreámos juntos – sobre o Serviço Público televisivo, sobre o emprego, sobre a fome, sobre os salários de miséria, sobre a sujeição a um governo exterior, sobre Portugal, sobre PORTUGAL, sobre o futuro e aquela frase na Praça de Espanha, aquela frase a que retiraram o P que dizia que CADA UM TEM DE FAZER A SUA ARTE, isto é, a PARTE DE CADA UM É FAZER A SUA ARTE – ligámos portanto, sem vazio humano, duas avenidas entre duas praças e conseguimos o impossível, extravasar do delta da Praça de Espanha, o destino alcançado, por todos os seus afluentes, um segundo movimento natural que se expandiu por Lisboa sem margens, como aconteceria se fossemos água e claro, água transparente, límpida, como eles não são, ocultos que são, secretos, corruptos, golpistas e demagogos – é deste tipo de gente que estamos fartos, deste tipo de gente que afinal nem compreendeu Abril e é puro revanchismo. 
A Lena nem se lembra das pernas, o que lhe vai no coração é fundo, vem de muito antes de Abril o desejo de um país igualitário e justo, o país que está na Grândola, o hino de Abril, em cada rosto igualdade. Falámos de 73, da sessão da Baixa da Banheira em que intervinha um Aníbal – não confundir - que tinha as barbas do Fidel, uma sessão com polícia no palco, vigiados. Eu, chegado de Lourenço Marques, abria os olhos. Uma torrente de sensações futuristas na pele logo prospectivas portanto, surgiu, Abril na mão e corpo, ali, a memória é física e por cumprir, Abril está-nos nos corpos e por fazer. E lembro-me do dia: quando a Marília nos telefonou, muito cedo nesse dia de Abril, seriam 6 horas da manhã disse: “não saiam, há uma revolução”, o tempo que levámos, eu e o Carlos, a chegar ao aeroporto foram minutos. Estávamos na Avenida da Igreja, em casa do Carlos e é agora o Carlos, neste 15 de Setembro, o meu primo Carlos, com quem moo à lupa as coisas da política desde os 15 anos, desde Moçambique, que me surge, mais a Augusta, num ponto do rio lento um pouco à frente da nossa entrada, estamos todos ali e como é prazeroso andar nestas vias rápidas à velocidade do desejo, assim, lentos de querer as nossas vidas. E tudo parece encaixar-se sem esforço. Há qualquer coisa de único: se em Abril algo explodiu por se quebrarem amarras e as pessoas procuraram identificar projectos e soluções que desconheciam e estavam a formar-se, agora o projecto somos nós, não delegamos a nossa voz em ninguém, representativa é a nossa presença múltipla e ampla, somos o país, somos a manifestação mais clara e civicamente expressa de um desejo: o país deve fazer outro caminho e, por assim dizer, encontrar as condições de surgimento e construção desta disponibilidade que aqui manifestamos de construir outro país, a nossa energia é imensa e somos muito mais que qualquer crédito bancário, o país necessita do nosso investimento enérgico, o país somos nós cá a transformá-lo e não nós lá em culto de nostalgia por obrigação porque aqui não há lugar – que terra é essa, de lotação esgotada, a pôr os seus à margem e arvorando sempre com os mesmos porteiros e donos?
Assim, deste modo liberto e aberto, só experimentara uma vez em plena Greve Geral em França. Na paragem do autocarro os civis paravam e perguntavam: vai em que direcção? Eu levo-o. Eles substituíam os serviços públicos para aqueles que necessitavam mesmo, era a vida a mudar, era prática de lógicas solidárias a brotar espontaneamente, gente bem formada, cidadãos. Foi assim que cheguei ao Charles De Gaulle.
É a vida que é importante, o modo como as relações se estabelece, o modo como se fazem as coisas, o modo como o trabalho é uma liberdade e um direito, o modo como não teremos de ser escravos de ninguém, nem assalariados de quem nos pode pôr na rua por dá cá aquela palha.

Um abraço Madail

E quem aparece agora? O Madaíl, de papel de rascunho na mão. No dia seguinte li a prosa no DN, prosa pictórica, levado pelas palavras como se estas fossem os sorrisos partilhados, um dia antes. E o Madaíl estava nas nuvens, senti-o nas nuvens, como um dançarino que justamente faz isso, tira peso ao peso, mas no rosto habitava uma exaltação contida, um impulso em direcção ao que não veio e que queremos que venha, outra vida, outro mundo. O Madaíl, magro e seco, abracei-o e ele abraçou-me. Um aparecimento entre tanta e tanta gente ali por alturas do Prédio FMI acendeu surpresa boa. E nesta parte do percurso as vaias assobiadas e os UHUUUSSS ganhavam força. A senhora do lado diz-me “são os escritórios da troika”, juntei-me então aos uhhuuuuus. E UUUUHHHUUU   UUS para a frente. Não é fácil um UHU agudo com matéria tão grave. A torrente alenta o passo, há um cordão de polícia ali, mas a coisa está calma até que estoira um petardo. Penso, será um infiltrado? Um prá-frentista de menos miolo? É necessário cuidado. Eles querem pretextos. Mas a surpresa maior foi que os polícias também pareciam pessoas. Aguentavam as tomatadas e fumos e mantinham-se mais ou menos tranquilos. De algum modo alguém lhes dissera que cacetada e democracia não colam. Será? Parece que houve um comunicado do sindicato nesse sentido. A tomatada instalou-se no passeio temporário do FMI – afinal era o escritório do FMI – dando uma cor inusitada aos lambris e calçada portuguesa. O sinal de os querer fora daqui ficou bem impresso no chão, os tomates como se sabe são uma fruta usada em todo o tipo de instalações e creio que quem os atirou pensou que estava de facto a fazer a sua parte, a sua arte. O Madaíl despede-se de folheca de bloco em punho e vai escrevinhando frases e perguntas. Não usa vídeo, é jornalista de escritas e anda de caneta em punho. Foi aliás um aspecto que me alegrou e surpreendeu, a quantidade de jornais de parede manuais, a quantidade de materiais elementares usados na construção de frases e a variedade de soluções gráficas de tipo artesanal e imediato, foram uma característica deste magnífico encontro humano na era em que o computador pode tudo, o pior do mau gosto gráfico. Muita coisa escrevinhada à mão por quem só usa computador e praticamente nada dessas novas tecnologias que, na realidade, foram essenciais no trabalho de mobilização, trabalho este que foi um engrossar da corrente entre os que o fizeram e os que vieram – o facebook é um instrumento de várias faces mas um meio essencial de combate.

Telemóvel

No meio do imenso Amazonas de gente quantos somos, perguntávamo-nos. Quantos seremos. No primeiro Primeiro de Maio éramos 500.000 mil – ouvi o Rosas falar de um milhão, seríamos? – Como fazer? E lá usei o telemóvel, numas quantas fotos tiradas segundo a técnica do periscópio. Braço ao alto, esticado, telemóvel na ponta dos dedos e zás. Mas nada, não conseguimos ver as pontas, a manifestação é gigantesca, é inumerável, não cabe em nenhuma estatística. Não foi por acaso que no dia seguinte nenhum defensor da austeridade, onde se meteram, andou a fazer combates de números, o ridículo seria insuperável. O povo não se pode reduzir a um número, nomeá-lo nunca seria um acto estatístico contra outro acto estatístico, dar-lhe como nome um número é uma aberração, um esquematismo de contabilista por fanatismo. Os do costume engoliram e calaram. Pensam que é episódico. Mas como dizia uma senhora: “somos pacíficos, somo um povo pacífico, mas até ver…” Eu estava pasmado, a senhora teria os seus quarentas e era formada em gestão. As coisas estão assim, há uma disponibilidade de combater que não tem os limites da sensatez que se prega às criancinhas para serem tão bem comportadas que só desejam mais tarde partir a louça toda contra o seu próprio medo de ser fora das baias. A imagem salazarenta de um povo ordeiro é diferente da imagem de Abril que canta que o povo é quem mais ordena. Os manifestantes ganham rapidamente a consciência que a legitimidade conferida pelo protesto de uma imensa maioria do povo português acaba com a outra, a de umas eleições refém de uma crise imposta pelo financismo, pela creditarização da economia contra a economia real e a nossa independência real, nacional mas também, alimentar, económica, de opinião – não somos de patriotismos abstractos e o nosso país é o dos exilados exteriores e interiores, aqueles que sempre foram afastados justamente por serem os melhores e não servis. Sabemos como grassa aí a mediocridade, também é esse o combate, essa forma de corrupção que se chama inveja há que estripá-la, e o medo também, o medo de que falava o Gil filósofo – que dirá disto?
Que liberdade é esta em que nos meteram que leva o Siza Vieira a falar de ditadura e o Souto Moura de um país como uma sala fechada sem oxigénio? Não, aqueles que ali vão sabem o que querem e o que querem também já não cabe nos partidos. Só uma solução suprapartidária apoiada por partidos mas que escolha os melhores governantes num regime aberto e um programa de acção que não faça da meta do défice o objectivo – mas sim a economia real, o emprego, a democracia e a liberdade de opinião e a qualificação dos portugueses – pode tirar o país do buraco. Muitos ali ao lado gritam o exemplo da Islândia que, mesmo que seja numa escala de “câmara”, não deixa de ser exemplo, isto é, de ter uma potência modelar. Os laboratórios são isso, espaços em que se simulam coisas numa escala que fala da outra.

A curva com senhora de 90 anos ou mais à janela

E chegamos ao Campo Pequeno. A Praça de touros lá está mas ninguém dá por ela, os olhares convergem para a praça de Espanha. Já passou uma hora e tal, extraordinário. Fizemos 2/3 quilómetros? A Avenida da República vai a transbordar, na curva metemo-nos no passeio da esquerda, já na Avenida de Berna, faz um sol bestial  etemos de nos acautelar. O tempo manifestou-se também a favor, ajudou a festa, a luminosidade não é agressiva mesmo fazendo calor de Verão e pouco depois estamos em pleno sol de novo. 
Numa janela do lado esquerdo, primeiro-andar alto, uma senhora com mais de noventa anos, erguida, o corpo direito na janela, quase marfim o pescoço alto, o rosto seráfico, como é raro ver, olha insistentemente a multidão com um olhar fixo. Está tão pálida que se estranha a coragem. Terá que idade? Cem anos? É provável. E o que pensará ela? O facto de continuar ali imóvel o quarto de hora que a tive na janela fez-me pensar que se estava ali queria estar connsoco também, com aquela cidade que vai ali, a cidade pode ser assim, alegre, de uma alegria sem preço nem marca, capaz de dizer que há alternativa, há alternativa sim, há o que podem ser as nossas vidas - quem é capaz de nos parar, existem pinochês e há espaço para pinochetadas mesmo na Europa de merda em que estamos? O que ali começa, onde estamos e nos juntamos, será difícil de travar.
Logo a seguir num segundo-andar à direita mãe e filho tocam, cantam, ele mais comedido a senhora batendo desenfreada numa velha panela. E envia mãos de beijos em carradas para quem passa.

A monarquia

E de repente uma bandeira monárquica, agitada, dançante e única, bestial, é impensável. Dança de modo nada monárquico, anca á solta, com muito movimento, estão a ver o Duarte a dançar, numa velocidade nada monárquica, está ali e ninguém a olha de lado, pelo contrário, dá um pouco de cor e mexe-se bem. Estamos disponíveis para diferenças que estranhamos se possam afirmar, somos pela alegria do diverso, pelos direitos das minorias, políticas, culturais, raciais, de todos os tipos – quem é que acha que o outro não possa ser assim ou tenha de ser assado? Só os fundamentalistas, de todos os tipos, incluindo os extremistas neoliberais que nos querem ver pobres, o seu modelo para que eles SEJAM LIVRES NA MEDIDA EM QUE SEJAM RICOS é que sejamos como os tais intocáveis que na Índia são a casta desgraçada e animalizada - não será esta sociedade de condomínios um feudalismo de novo tipo?
Já não é tempo de reis nem de rainhas – as tetas da princesa inglesa aí, no deus dará mediático, bem o dizem - e histórias de fadas também não. São memória e matéria de ficção. Tempo de fadas sempre, claro, as fadas que conseguirem ser corpo de invenções de outros em dado momento de vida. Mas reis e rainhas? Com direitos especiais e fortunas? A adaptarem-se agora às lógicas do turismo, como se fossem reis de pacotilha para cambio, entrada de divisas? Mas isso é com cada povo e se há povos que gostem de ter reis é certamente porque a história, tendo-os expulso, ainda não acabou com o que é a inércia das forças residuais – a história, mesmo acelerada, é lenta do ponto de vista da transformação das relações sociais. O sinal disso a bandeira que dança, ali, na manifestação, de uma forma que não tem protocolo?
Ao chegar à Praça de Espanha não sabíamos para onde ir. Onde raio estará o palco? Percebemos rapidamente, o Carlos, a Augusta a Lena e eu, que naquela escala não haveria palco possível. E todos sabemos de Woodstock, do pequeno-almoço na cama para quatrocentos mil com chuva. Telefono ao Rui Pedro Rebelo: então Rui onde é que é o palco? Que não sabia, tinha saído para comprar uma água e tinha vindo parar à Praça de Espanha. Então mas não és do Precários Inflexíveis? Não, que não era, mas estava com eles. Então onde raio há um precário verdadeiramente inflexível que nos diga onde são os palcos? Necessitamos de um desenlace, de levar dali texto metido no coração, de activar o músculo cardíaco com o sentido do que estamos a viver. Mas ninguém previra o tamanho que a coisa tomara. Era impossível falar para aquela gente toda. As pessoas falam agora em pequenos grupos, umas para as outras, falam em desejo de ouvir alguém a traçar resultados e consequências. Por ali o semáforo está verde. Estará com receio de ficar vermelho ou sou eu que só o vejo verde? Mas está verde garanto. Um verde esperança, pintei. Não se olha a cor de um semáforo que diz para seguirmos ou pararmos. Ali estava verde e continuava verde. Um milagre electrónico? Aparece o Zé, o meu irmão mais velho. Vem com o seu ar blasé composto e traz um bronzeado açoriano, está surpreso como nós mas é talvez um pouco mais céptico, tem levado fortes bordoadas no salário.
Despeço-me do meu primo Carlos que logo me telefona, já do Campo Pequeno, a dizer que a manifestação não terminou, que está a chegar gente. Já tinham passado mais de duas horas e começamos a andar em direcção ao Quartel-Generl, passando à Gulbenkian, à da Gulbenkian como se diria no Alentejo. Um jardim magnífico, uma instituição que desafiou pela qualidade e qualidades – saudoso ballet - Salazar e Caetano, que deu muitas alegrias ao país e que agora, um estudo idiota, diz que está num lugar não sei quê num ranking criado por cretinos que nem sequer perceberam que a Gulbenkian é uma das jóias da coroa caída do céu e que é uma instituição privada, sem dinheiros públicos e portanto de outro ranking. Fala um bolseiro, claro, mas digo verdades.
E continuamos. Toca o telefone: é o Paulo Calatré a dizer que no Porto tinha sido uma grande manifestação, extraordinária manifestação, forte, animada e com propósitos claros. O mesmo me é dito das Caldas no dia seguinte, a Ana que esteve lá. O mesmo vejo que aconteceu em Coimbra, em cerca de quarenta cidades. É incrível. O país está na rua por todo o lado, a macrocefalia por um momento parece desaparecer no gesto comum das cidades.
Nunca foi tão claro que a rua é útil, que é um modo particular de dizer coisas, é o modo particular de dizer coisas quando a vida se torna insuportável – a rua são as imensas páginas de um romance que os corpos escrevem naquelas horas. É de facto necessário correr com estes tipos do poder. Já muita gente disse que são perigosos, estes tipos são perigosos, são insensíveis e têm uma agenda predadora, são capazes de desmantelar o país mais do que está e de o hipotecar para sempre, de fazer de Portugal uma imensa favela abandonada e dos portugueses famintos, turismo de miséria, reserva índia. Vou a chegar ao carro e está uma senhora num caixote de lixo a tirar de lá coisas, toda a gente que passa olha constrangida. É isto que os filhos-da-puta querem, penso eu.

São Bento Parlamento

Dou pelo Parlamento – o P grande é para se ver melhor, como os dentes do lobo querem ser pequenos, por oposição - cheio de gente já no British Bar, o Bar do Cardoso Pires, ao Cais do Sodré, que frequento a espaços longos de tempo desde 73 e onde me dou com a tribo moçambicana. O quê, foram para o Parlamento? Estivera lá recentemente numa manifestação em que alguns polícias à paisana espancaram um jovem por este estar a pisar a grade de segurança entretanto caída. Todos nós a percebermos que era um exaltado, um rapaz perdido no seu excesso. Mas os à paisana foram implacáveis e somaram porrada no corpo do rapaz. Uma brutalidade e uma estupidez, falta de cabeça que agora não verifiquei. Vou para o Parlamento e vou até lá, ao cimo das escadas. Olho o rapaz polícia que está diante de mim com o seu enorme capacete, uma cabeça de escafandro, deve ser à prova de tudo e mais do que tudo, à prova de palavras, está lá dentro encerrada, a cabeça, está suspensa a cabeça, não tem cabeça, está refém no capacete. Lembra-me a estátua de Lagos, do Cutileiro, D. Sebastião de armadura, elmo e viseira, mas sem força para que estes cumpram o lugar cimeiro no corpo adolescente. Ali à frente um rapazola a ganhar horas extraordinárias e subsídio de risco. A dívida pública cresce ali ao minuto. Eles não acham que as polícias sejam gordura estatal claro, nem concebem meios de prevenir crimes e roubos que passem por alternativas à repressão e obviamente por uma escola em que a violência não seja uma pedagogia diária, isto é, contaminada e dependente dos conflitos que são exteriores, uma escola que prolonga a televisão e a deseducação, como estes tipos querem e como os professores combatem de há muito. Não há solução para a escola nas lógicas massivas, isto é claro e a qualificação passa justamente pelo combate à massificação. O teatro tem aí o seu lugar como responsabilidade de exercício público, é a grande escola da vida e de clarificação dos ocultos, da abrangência total do que é diverso, das relações humanas e de todas as variedades de fenómenos e é presencial, como as aulas dos professores, um teatro. Essa seria a razão da multiplicação de teatros escolas. E essa razão de estruturação democrática leva à outra, à liberdade artística.
Estou a olhar o rapaz polícia e a pensar, está um calor tramado, deve ser lixado estar de capacete e imóvel. Ele nem troca os olhos, o olhar é fixo. Estes que estão aqui em baixo, à minha frente, fazem de barreira, é como se fossem a estrutura metálica. Uns que estão nos degraus acima comandam. Mexem-se muito, andam de um lado para o outro. À esquerda, pelo relvado acima, mais polícias. Espalhados entre arbustos e por assim dizer a cavalo no desequilíbrio. São uns tantos e estão mais descontraídos. Olho para o rapaz e digo-lhe mentalmente, tira isso, pá, está um calor maluco, vai beber um fino, eu não digo nada ao chefe. Ao meu lado uma miúda um pouco exaltada berra sozinha invasão, invasão, ninguém a segue. As miúdas andam tesas, penso, estão na linha da coragem. E volto a olhar o rapaz, os seus olhitos estão mais pequenos, a cara parece um estranho peixe dentro de um aquário, o nariz, os olhos, tudo em compressão e transformado pela lente blindada, lá longe, uma cara no fundo do aquário – este tipo está escafandrado, invento. Do outro lado surge um “junta-te a nós” bem berrado, alto, seguido logo a seguir de um “tira a farda”. Há tensão e tranquilidade ao mesmo tempo, não há propriamente guerra. Como se de um lado e de outro se soubesse que aquele braço de ferro não é exactamente com eles, os polícias, mas com os outros os que os usam. Que os manifestantes estão ali e que esse facto de estar ali significa que querem outro país e estão dispostos a derrubar este poder ilegítimo – o estado de excepção, ou de emergência financeira, se legitima o ilegítimo também legitima o derrube dos que criam a emergência pondo-se à margem da lei e da constituição. 
O telefone toca, é a Isabel: “és maluco, sai daí, olha a tua perna”. Como é que sabes que estou aqui? “Vi-te na televisão, apanhei-te no meio de muitos, ali à frente, a dois passos dos polícias. Sai daí.”
O admirável mundo contemporâneo é de facto extraordinário.
Setembro 15 foi 25 de Abril sempre.
fernando mora ramos