sábado, 11 de janeiro de 2014

Definitivamente as Bahamas

Na convenção teatral burguesa um diálogo deve ser bem urdido, carpinteirado – que palavra –, correr atrás da lógica sequencial, da silogística e da argumentação contrapontada, da complementaridade simétrica. Uma coisa segue-se a outra. Portanto: nem pensamento no sentido da sua potencialidade, em bruto, fora de sítio, emergindo, nem desrazão, surdez psicológica, menos ainda incapacidade expressiva, vulgaridade a explorar no que a realidade oferece, matérias-primas de escritas. Nesta tradição, o diálogo bem feito da peça bem-feita, sobrepõe-se às virtualidades do real, mais inventivas que qualquer regra ou bom gosto e fruto de condicionamento ideológico – ideias mais comportamentos – nos territórios em que agem os sujeitos reais nas situações que nos interessam reconstruir artisticamente, diagnosticar, tendo exercitado dramaturgicamente a compreensão da sua complexidade mas sem a intenção de dar lições a quem quer que seja, antes de suscitar interrogações, novos olhares, fazer luz sobre penumbras e escuros de um modo que só o teatro é capaz de fazer, em assembleia e com prazer. 
Revelar o escondido nos mundos próximos, expor a inumanidade feita rotina é um objectivo do teatro desde o pós-guerra – na sociedade do hipercontrolo massivo já a realidade é outra, o poder omnipresente do consumismo engendra as monstruosidades que o quotidiano deita para fora como o rio que transborda e expulsa do leito o que no seu devir imparável, arrasta e sucumbe à força – o meu reino por umas sapatilhas de marca diz um adolescente, a minha vida por um corte de cabelo na moda, o meu futuro é um carro, a minha cozinha um céu, os duzentos canais televisivos o próprio Olimpo. 
Crimp diz que escreve sobre o que as pessoas falam, estrutura as coisas que ouve, observa e desenvolve experiências rítmicas e microestruturas dialogais que são recorrentes – os diálogos tropeçam no mesmo e vão avançando por movimentos concêntricos até que se fecha um círculo maior que os contém. Em Definitivamente as Bahamas o casal volta ao mesmo momento enquistado de uma crispação dialogal, repete um assunto que é disputa competitiva, por exemplo discutir se o filho esteve nas Bahamas ou nas Canárias – a memória esvai-se – e avança no tempo parando sobre um vazio que os toma para, no fim da peça, regressar ao princípio: a descoberta novo-rica do valor do silêncio na casa nova – a antiga era sob uma rota de aviões. Um silêncio que para eles pode ter estrelas de qualidade hoteleira, mas que ameaça ser tumular à medida que nada de novo são capazes de dizer um ao outro. Um ao outro? Mas quem são e o que age neles senão um exterior que está muito para além do que se nomeiam?
As formas dialogadas de Crimp não significam troca individual, fluxo afectuoso, subjectivação, mas essa crueldade das relações humanas que desvenda subtilmente, nas entrelinhas da mente, no lapso de memória, no erro involuntário, na linguagem e que revelam uma espécie de fascismo quotidiano instalado nas relações e exercido por identidades cristalizadas. Não esqueçamos que o sistema é, no fundo e em plena fabricada efervescência do consumo, o mesmo que engendrou o nazi-fascismo. 
Não são diálogos, o que escreve, mas surdez recíproca, incomunicabilidade egocêntrica, agressão, tendência homicida – em muitos casais, como na peça, o homicídio “involuntário” de longa duração é prática diária, a crueldade, um estado de alma recorrente.
Crimp diz que as pessoas reais dizem coisas incrivelmente cruéis. Em Definitivamente as Bahamas existem um polo sul e um polo norte que se atraem, Milly e Frank. Atraem-se dos extremos em que estão, de uma distância inultrapassável mas irmanada. A caracterização polar também é de Crimp. 
Milly e Frank são um casal nos sessentas, ficcionado por um autor de trinta. Crimp diz que lembram os pais mas não são os pais. Assim é a ficção, um desvio, um afastamento do que é para lá se regressar pensando que os espectadores têm um papel a desempenhar: o contrário do consumo, uma leitura, não um entretém, prazer real e não passatempo – o prazer é uma experiência interior, o charadismo entretenedor um fora em que as pessoas projectam uma sociabilidade que é ritual, fingimento de comunidade, amontoado de pessoas. 
E há a jovem Maryka, holandesa em Erasmus, o assunto do casal, do filho Mike e da nora Irene, que laqueou as trompas depois de um aborto pouco claro quanto às razões – Maryka tirou aquela família da sua rotina: o seu inglês é estranho, a racha na saia um exagero de estilo, a sua informalidade sem regra, o seu sex appeal parece motivar um estremecimento na família, presa num voyeurismo algo perverso e sem assunto vital, futuro – um neto - necessitando de estímulo exterior tal como quem está num coma de passividade conformada e confortável. Para Myke, Maryka é uma excitação, um caso fácil, um motivo de exacerbação do seu sexismo mal vivido. Irene parece longe do desejo, virada para a casa e os azulejos. Mesmo os pais de Myke projectam um suposto par Mike/Maryka e Irene fotografa-os numa proximidade promissora. 
Milly é uma máquina falante e Frank um complemento, a sua resistência passiva encontra nas ausências mentais uma forma de fuga. Quando Milly está incontinente verbal ele está em nenhures, entorpecido por um vazio que o toma – nela o vazio é gritante, presença vocal, torrente. Em outras ocasiões ele tem qualquer coisa de Milly também, uma maldade contra o mundo unifica-os. São polos opostos mas o conservadorismo de ambos solda-se em torno de uma moderação defensiva de Frank, machista em território específico – dos “homens” em geral – e de um extremismo militantemente britânico de Milly, capaz de um racismo de apartheid. 
O desejo dela é uma piscina, o dele, um fim-de-semana de visita aos bolbos na Holanda. Tanto a piscina como o fim-de-semana são em conta: ela arranja um homem barato para escavar um buraco e o fim-de-semana dele está em promoção. Há aqui uma divergência profunda... De resto efabulam a sua vida através de terceiros, o filho, a nora, Mike e Joan, a amiga de Milly. São corpos desistentes, enfiados nos sofás. Ir à cozinha é uma épica. O reaccionarismo de ambos é um imobilismo, enterrados nos sofás falam, falam, ela fala, fala, pelos cotovelos, interminavelmente. 
Para Milly tudo o que é exterior, estrangeiro, é bárbaro, só no seu universo e na sua regra doméstica as coisas são elevadas – para Mike as coisas são também assim, Maryka, a jovem holandesa sabe certamente Afrikans – qualquer holandês o sabe - e é uma potencial mulher de montra nas Walledjes, na realidade os que são outros são estereotipados por ele. Frank e Milly são reféns da sua pobreza cultural, parecidos com tudo o que nos vem cercando com a progressão da hegemonia americanizada dos modos de vida. Como em Menos emergências, extraordinária peça curta, o lá fora é a barbárie, o mundo civilizado são eles fechados nos seus medíocres castelinhos domésticos a olhar de longe a realidade e de perto a água parada de uma piscina. Agamben define esta pequena burguesia universal como a ausência total de identidade, essa capacidade de vestir constantemente a camisola de um outro qualquer cultural que vá preenchendo o seu fechamento chauvinista e globalizado – ser americano é ser globalmente senhor do mundo naquele sentido em que se tem o comando do planeta na mão como quem tem um comando de televisão.


fernando mora ramos

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A Tangerineira

Aquela tangerineira fui eu que a pus com o Henrique. Num buraco fundo, para firmar bem a pouca raiz que tinha. O corpo quase todo dentro e ao relento – é o destino das árvores, pulmão frágil do mundo - as poucas ramagens e as duas folhas de uma árvore bebé. Foi em cima do Natal e queria selar algo entre nós, família alargada nos dois, que durasse um tempo significativo e fosse uma espécie de anteparo de tragédias por vir – eu queria uma fortaleza pactuada, um alicerce sagrado pelo que nos foi dado pelo mistério do ser aí das coisas, a tangerineira, a folha, a tangerina, o humor olfactivo da sua casca e o agridoce do sumo, aquele tipo de coisa que no som dizemos timbre e é único, dali, tu associa-lo não ao que é idêntico mas ao sítio, aquele canto do quintal e estarmos ali, nós, aqueles que somos e a nossa infância.
Onde raio encontrar, à beira do Tejo, nas adjacências da Lisboa da praia de Pedrouços – quem sabe ao que isso ecoa de velas e especiarias, que murmúrios salinos vêm na brisa – uma tangerineira com futuro no corpo adquirível? Em miúdos sonhávamos com a prenhez das grainhas. E quantas as atirávamos como deuses para a terra disponível esperando desenvolvimentos súbitos sempre demorados, espantávamo-nos do nada visível e zarpávamos dali para montar a tenda noutra paragem: a pressa da criança não é embalada pelo tempo que o tempo se dá para germinar o que seja. Os milagres na infância querem-se automáticos, rápidos como uma correria, um salto a pique do alto do guarda-fato, a janela partida numa aposta.
Onde raio encontrar uma tangerineira? A nespereira do vizinho do lado já se tinha ido mas deixou caroço do nosso lado. A nespereira, como o limoeiro, eram do início, do tempo das portas sempre abertas, a casa atravessada por corpos em flecha. Árvores primordiais, nem as víamos, éramos com elas o quintal, também nós sementes. Por isso queria a tangerineira, marca de novo início, não havia nenhuma por ali e tinha tamanho adequado, não exigia escada, a poda seria um corpo a corpo tranquilo e a copa emparelharia com as das outras, mesmo com a ameixoeira do lado, o luxo do lugar. Árvores eram portanto quatro. A ameixoeira fora milagre, um surgimento sem plano, nada a explica, ainda hoje, já só tronco, meio e robusto como seria o de um carvalho decepado na terceira idade. A ameixoeira crescera para o lado, anca capaz de fundações, ancora. E tinha uma coisa única, resinava cores impossíveis de translúcidas, falas de deuses, néctares e ambrósias – em boa verdade o quintal tornou-se na memória um olimpo de terrenidades.
Nódoas de nêspera são terríveis, nem do corpo saem. A roupa estava portanto tatuada desse sumo que escorria na vertigem da sede de tudo. Com a tangerineira seria diferente, menos definitiva a sua marca e mais perene o cheiro da casca nos dedos – bem, e sempre estamos trinta anos depois. Não é uma mania, é destino, a paixão dos aromas do quintal. Nunca mais nos larga, como o olhar pousado da mãe quando vem naquele toque do voo da ave matreira, cansaço nos ombros, as mãos sem parar. São as origens, lá para o país das matas de castanheiros e da cal. Pôr-nos a mão em cima sempre. Esgotada a mão ficava esse olhar calado e aumentado que o tempo foi cavando como uma ruga imparável.
Ele, o Henrique, era a mãe. Era completamente a mãe, mais que o mais velho e que o segundo, obsessão em linha recta – o mais velho também. Em tudo ela tentou, no lápis da escola, nas cópias à força de pachorra insistente, nos ditados, na tabuada – como com o pai dela - no topo das árvores, o mesmo sobrevoo. Afinal o que é essencial? O banho da razão? Também ela teria sido sempre, sentindo-se, alguém no topo das árvores. Onde estás tu rapariga, dizia o pai plantado na soleira imaginada. Ninguém a via. Como ele, nas alturas. Há pessoas que não desistem de ser pássaros. Fazem-se portanto às árvores como outros às cadeiras, esse enraizamento na imobilidade que nos vai ganhando para o lado de lá que sempre espreita, primeiro sob o impacto da voz dos donos, dos grandes condicionadores, depois pela voz orgânica, a da humidade essencial de tudo.
E saímos no meu Clio a caminho da tangerineira possível num Domingo, creio, pelo menos para efeito ficcional era, é, um domingo. De Domingo para domingo veio o acordo ortográfico – nada a ver com tangerineira, mas surgiu a meio dos dedos e teclado, a letra ergueu-se no ecrã maiúscula, minúscula, apetecida.
E fomos para a periferia imediata, Linda-a-Velha, Alfragide, por-ali-fora, estrada do parque de campismo – tudo isso está mudado, agora uma espécie de vazadouro tentado de fluxo contínuo de trânsito que é de um contínuo mais, ou menos, parado. As vistas são as do engarrafamento light desde que abriu o nó da Buraca, a traseira do da frente sempre ali e o tipo do lado a fingir que não me vê ou a não me ver, nem a si mesmo, interiorizando as próprias mudanças, a reduzida na mente, metida uma terceira, mete a terceira, para, arranca, paraaaarranca, as carantonhas ensimesmadas de raiva.
No tempo das estradas elas eram paisagens, bermas, campos de vinha e a prise – o que o meu pai gostava de dizer prise, este carro tem uma boa prise, a caminho de Inhambane. As árvores eram outras, o palmeiral e as mangas, já quase no Tofo. O nosso quintal é alargado, nele cabe um mundo tão largo quanto os confins do Save, a picada abrupta e as gazelas. E a bananeira que o Henrique plantou no quintal da frente – o quintal da frente não seria para fruta, era hall, mas o Rico era sem régua e esquadro, desde miúdo as voltas trocadas, tortas direitas, eram dele, muitos nascemos do avesso – a bananeira da frente era, ao fim-e-ao-cabo, a sua República, a sua paisagem vadia ali enfiada. Coqueiro mesmo era mesmo o da Palmeira, antes da curva da Macia e antes dos ananases da picada suave – quarenta quilómetros de areal - a cinco quinhentas, cinco, como as quinas, que bandeira aquela. [A última bicuda que grelhámos foi por ali, no Bilene, com o Camilo e o Leite.] E como esquecer entre as estradas vindas do fundo da tralha, pedaços de tempo e fotos, o caminho das árvores fechadas, ali à Portagem, Marvão por cima, e Escusa no sopé, tudo a desaguar numas águas ainda límpidas: milagre do atraso diria o homem do progresso fazendo contas. 
Entrámos então numa grande superfície, numa mega superfície, numa híper superfície. Uma selva de objectos e gente, multidão. Tudo ao molhe e fé na bugiganga, olhos esbugalhados de ausência e desejo de qualquer coisa a um mesmo gestempo, cada um perdido em si nas coisas. Pelos corredores fora demos com a secção naturezas vivas depois de atravessar a das naturezas mortas, corpos de frangos embalados em vácuo em fila indiana deitados sob projectores de luz higiénica e pinturas de fruta avermelhada em quadris de madeira com mais febres de cor que quando tu coras de prazeres e sabe-se como ficas.
E videiras, trincadeira preta, alicante bouchet, touriga nacional, franca, tinto cão – confesso o prazer que tenho de dizer tinto cão – tinta roriz e trincadeiras – as castas magníficas do Douro – verdelho, malvasia, baga, arinto, sirah, síria e outras e logo a seguir, romãzeiras, macieiras, ameixoeiras, diospireiros, marmeleiros, e numa das últimas esquinas em finalmente cá estamos, os citrinos. Qual a melhor tangerineira? Dá para perguntar ao empregado? Está escrito? Ou ela será de dizer eu sou a tal? Não. Nada. Do empregado de tangerinas nem um arremedo de opinião, para ele tangerina, clementina, tangera, o mesmo quê, fruta, tudo fruta. Se falássemos de pera rocha ainda vai que não era e fosse capaz, era do Bombarral. [Aparte: havia um tipo do tempo do serviço público, do telejornal novaiorquino, que dizia sempre pera e não para nem pera. Vou pera Pernambuco soa mesmo estranho. Dizia aquilo como se a pera de pera tivesse perdido o norte, ou o sumo, o que acontece à fruta calibrada, é miss fruta mas não suma.]
E pegámos na tangerineira com o ar mais saudável, as duas folhas únicas ainda verdes, sem que a palidez das luzes interiores as tivesse adoentado. De regresso a casa não há história, viemos num foguete, o objectivo clama por velocidade, operacionalidade. Começámos a cavar a cova da tangerineira como quem tem desejos de elefante. Num primeiro tempo a cova engoliu a árvore, o buraco maior que o porte arbóreo à mão. Mas lá chegámos à medida certa – tudo em uma medida – e lá a plantámos com doses de vitaminas e terra empurrada, compactada. Água, muita no baptismo, do Tejo, que a árvore queria-se irmanada com a bananeira do quintal da frente, de moçambiques fora.
Hoje quando vejo, ano a ano, a fruta renascer tenho ali o Henrique. É o meu natal, o nosso ano novo. Além disso aprendemos a tratar os cachos da bananeira: passam na dispensa dois meses, envoltos em folhas do Público e papel de alumínio. As bananas ficam gourmet com tanto cuidado narrativo. E são as dele.
fernando mora ramos