quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A Tangerineira

Aquela tangerineira fui eu que a pus com o Henrique. Num buraco fundo, para firmar bem a pouca raiz que tinha. O corpo quase todo dentro e ao relento – é o destino das árvores, pulmão frágil do mundo - as poucas ramagens e as duas folhas de uma árvore bebé. Foi em cima do Natal e queria selar algo entre nós, família alargada nos dois, que durasse um tempo significativo e fosse uma espécie de anteparo de tragédias por vir – eu queria uma fortaleza pactuada, um alicerce sagrado pelo que nos foi dado pelo mistério do ser aí das coisas, a tangerineira, a folha, a tangerina, o humor olfactivo da sua casca e o agridoce do sumo, aquele tipo de coisa que no som dizemos timbre e é único, dali, tu associa-lo não ao que é idêntico mas ao sítio, aquele canto do quintal e estarmos ali, nós, aqueles que somos e a nossa infância.
Onde raio encontrar, à beira do Tejo, nas adjacências da Lisboa da praia de Pedrouços – quem sabe ao que isso ecoa de velas e especiarias, que murmúrios salinos vêm na brisa – uma tangerineira com futuro no corpo adquirível? Em miúdos sonhávamos com a prenhez das grainhas. E quantas as atirávamos como deuses para a terra disponível esperando desenvolvimentos súbitos sempre demorados, espantávamo-nos do nada visível e zarpávamos dali para montar a tenda noutra paragem: a pressa da criança não é embalada pelo tempo que o tempo se dá para germinar o que seja. Os milagres na infância querem-se automáticos, rápidos como uma correria, um salto a pique do alto do guarda-fato, a janela partida numa aposta.
Onde raio encontrar uma tangerineira? A nespereira do vizinho do lado já se tinha ido mas deixou caroço do nosso lado. A nespereira, como o limoeiro, eram do início, do tempo das portas sempre abertas, a casa atravessada por corpos em flecha. Árvores primordiais, nem as víamos, éramos com elas o quintal, também nós sementes. Por isso queria a tangerineira, marca de novo início, não havia nenhuma por ali e tinha tamanho adequado, não exigia escada, a poda seria um corpo a corpo tranquilo e a copa emparelharia com as das outras, mesmo com a ameixoeira do lado, o luxo do lugar. Árvores eram portanto quatro. A ameixoeira fora milagre, um surgimento sem plano, nada a explica, ainda hoje, já só tronco, meio e robusto como seria o de um carvalho decepado na terceira idade. A ameixoeira crescera para o lado, anca capaz de fundações, ancora. E tinha uma coisa única, resinava cores impossíveis de translúcidas, falas de deuses, néctares e ambrósias – em boa verdade o quintal tornou-se na memória um olimpo de terrenidades.
Nódoas de nêspera são terríveis, nem do corpo saem. A roupa estava portanto tatuada desse sumo que escorria na vertigem da sede de tudo. Com a tangerineira seria diferente, menos definitiva a sua marca e mais perene o cheiro da casca nos dedos – bem, e sempre estamos trinta anos depois. Não é uma mania, é destino, a paixão dos aromas do quintal. Nunca mais nos larga, como o olhar pousado da mãe quando vem naquele toque do voo da ave matreira, cansaço nos ombros, as mãos sem parar. São as origens, lá para o país das matas de castanheiros e da cal. Pôr-nos a mão em cima sempre. Esgotada a mão ficava esse olhar calado e aumentado que o tempo foi cavando como uma ruga imparável.
Ele, o Henrique, era a mãe. Era completamente a mãe, mais que o mais velho e que o segundo, obsessão em linha recta – o mais velho também. Em tudo ela tentou, no lápis da escola, nas cópias à força de pachorra insistente, nos ditados, na tabuada – como com o pai dela - no topo das árvores, o mesmo sobrevoo. Afinal o que é essencial? O banho da razão? Também ela teria sido sempre, sentindo-se, alguém no topo das árvores. Onde estás tu rapariga, dizia o pai plantado na soleira imaginada. Ninguém a via. Como ele, nas alturas. Há pessoas que não desistem de ser pássaros. Fazem-se portanto às árvores como outros às cadeiras, esse enraizamento na imobilidade que nos vai ganhando para o lado de lá que sempre espreita, primeiro sob o impacto da voz dos donos, dos grandes condicionadores, depois pela voz orgânica, a da humidade essencial de tudo.
E saímos no meu Clio a caminho da tangerineira possível num Domingo, creio, pelo menos para efeito ficcional era, é, um domingo. De Domingo para domingo veio o acordo ortográfico – nada a ver com tangerineira, mas surgiu a meio dos dedos e teclado, a letra ergueu-se no ecrã maiúscula, minúscula, apetecida.
E fomos para a periferia imediata, Linda-a-Velha, Alfragide, por-ali-fora, estrada do parque de campismo – tudo isso está mudado, agora uma espécie de vazadouro tentado de fluxo contínuo de trânsito que é de um contínuo mais, ou menos, parado. As vistas são as do engarrafamento light desde que abriu o nó da Buraca, a traseira do da frente sempre ali e o tipo do lado a fingir que não me vê ou a não me ver, nem a si mesmo, interiorizando as próprias mudanças, a reduzida na mente, metida uma terceira, mete a terceira, para, arranca, paraaaarranca, as carantonhas ensimesmadas de raiva.
No tempo das estradas elas eram paisagens, bermas, campos de vinha e a prise – o que o meu pai gostava de dizer prise, este carro tem uma boa prise, a caminho de Inhambane. As árvores eram outras, o palmeiral e as mangas, já quase no Tofo. O nosso quintal é alargado, nele cabe um mundo tão largo quanto os confins do Save, a picada abrupta e as gazelas. E a bananeira que o Henrique plantou no quintal da frente – o quintal da frente não seria para fruta, era hall, mas o Rico era sem régua e esquadro, desde miúdo as voltas trocadas, tortas direitas, eram dele, muitos nascemos do avesso – a bananeira da frente era, ao fim-e-ao-cabo, a sua República, a sua paisagem vadia ali enfiada. Coqueiro mesmo era mesmo o da Palmeira, antes da curva da Macia e antes dos ananases da picada suave – quarenta quilómetros de areal - a cinco quinhentas, cinco, como as quinas, que bandeira aquela. [A última bicuda que grelhámos foi por ali, no Bilene, com o Camilo e o Leite.] E como esquecer entre as estradas vindas do fundo da tralha, pedaços de tempo e fotos, o caminho das árvores fechadas, ali à Portagem, Marvão por cima, e Escusa no sopé, tudo a desaguar numas águas ainda límpidas: milagre do atraso diria o homem do progresso fazendo contas. 
Entrámos então numa grande superfície, numa mega superfície, numa híper superfície. Uma selva de objectos e gente, multidão. Tudo ao molhe e fé na bugiganga, olhos esbugalhados de ausência e desejo de qualquer coisa a um mesmo gestempo, cada um perdido em si nas coisas. Pelos corredores fora demos com a secção naturezas vivas depois de atravessar a das naturezas mortas, corpos de frangos embalados em vácuo em fila indiana deitados sob projectores de luz higiénica e pinturas de fruta avermelhada em quadris de madeira com mais febres de cor que quando tu coras de prazeres e sabe-se como ficas.
E videiras, trincadeira preta, alicante bouchet, touriga nacional, franca, tinto cão – confesso o prazer que tenho de dizer tinto cão – tinta roriz e trincadeiras – as castas magníficas do Douro – verdelho, malvasia, baga, arinto, sirah, síria e outras e logo a seguir, romãzeiras, macieiras, ameixoeiras, diospireiros, marmeleiros, e numa das últimas esquinas em finalmente cá estamos, os citrinos. Qual a melhor tangerineira? Dá para perguntar ao empregado? Está escrito? Ou ela será de dizer eu sou a tal? Não. Nada. Do empregado de tangerinas nem um arremedo de opinião, para ele tangerina, clementina, tangera, o mesmo quê, fruta, tudo fruta. Se falássemos de pera rocha ainda vai que não era e fosse capaz, era do Bombarral. [Aparte: havia um tipo do tempo do serviço público, do telejornal novaiorquino, que dizia sempre pera e não para nem pera. Vou pera Pernambuco soa mesmo estranho. Dizia aquilo como se a pera de pera tivesse perdido o norte, ou o sumo, o que acontece à fruta calibrada, é miss fruta mas não suma.]
E pegámos na tangerineira com o ar mais saudável, as duas folhas únicas ainda verdes, sem que a palidez das luzes interiores as tivesse adoentado. De regresso a casa não há história, viemos num foguete, o objectivo clama por velocidade, operacionalidade. Começámos a cavar a cova da tangerineira como quem tem desejos de elefante. Num primeiro tempo a cova engoliu a árvore, o buraco maior que o porte arbóreo à mão. Mas lá chegámos à medida certa – tudo em uma medida – e lá a plantámos com doses de vitaminas e terra empurrada, compactada. Água, muita no baptismo, do Tejo, que a árvore queria-se irmanada com a bananeira do quintal da frente, de moçambiques fora.
Hoje quando vejo, ano a ano, a fruta renascer tenho ali o Henrique. É o meu natal, o nosso ano novo. Além disso aprendemos a tratar os cachos da bananeira: passam na dispensa dois meses, envoltos em folhas do Público e papel de alumínio. As bananas ficam gourmet com tanto cuidado narrativo. E são as dele.
fernando mora ramos

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