segunda-feira, 24 de setembro de 2012

As tetas da princesa

Agora diz-se top less mas sabemos que o top é prótese e as mamas, da pessoa, enquanto forem. As mamas da princesa são reais, monárquicas, devem ser olhadas portanto como os reis eram, como que tendo um sinal impresso da sua origem divina, o holograma real da distância de classe. As mamas são de algum modo mais que criação de um deus ou de Deus, a expressão da sua ordem na terra, da sua desordem. As mamas da princesa devem ser respeitadas como outras partes do corpo da princesa, o cu por exemplo para não falar da pachacha, por exemplo. É inimaginável ver-se toda a família real em biquíni, principalmente o príncipe, mas também a rainha – o que seria da rainha com biquíni, seria ela mesmo e logo o epicentro do seu próprio tsunami. Aliás o biquíni já é um modo de retirar à monarquia o seu carisma real, de realeza e colocar essa aura pelas ruas da amargura ou mesmo entre as filas intermináveis de praticantes de bronzeado. Essa é a hora de ponta específica do verão e faz tão mal como a batata frita, sendo portanto uma prática generalizada, ao contrário da missa que tem muitos não praticantes. A monarquia tem de andar sempre de gola alta mesmo que seja no pino do verão, disse o Monsenhor Lefebvre – não confundir com Henri Lefebvre - ainda lúcido. É na gola alta que está o pedigree que não é nome de cão. Aliás deveria dar o exemplo e no pino do verão, por assim dizer, cobrir-se de golas altas dos pés à cabeça. De facto esta história é chocante, a da princesa de mama ao léu, e não apenas para as revistas das coisas chocantes que por assim dizer relatam a humanidade dos grandes como um futebol de desamores, quer dizer, relatam naquele sentido de que humanidade e disparate se conjugam e também naquele outro de que humanidade e mediocridade também se conjugam amiúde - é uma palavra que temos de usar, amiúde, não há dúvida que a repetição é a nossa condição e não falo de répétition, que é um fado meu, falo mesmo de acordar todos os dias. 
Esta problemática das mamas, como a de qualquer parte do corpo, mas esta em particular, associa-se a coisas graves e a coisas menos graves. E obviamente à beleza. Ainda não ouvi um comentário à beleza das mamas da princesa nem às mamas em si, só se lêem comentários ao top que estava less. Mas nem ao top em si há comentários, porventura porque seria publicidade encapotada, o que essas revistas passam a vida a fazer, nem fazem outra coisa. Creio que neste assunto das mamas se estivéssemos em período eleitoral a princesa ganhava, mesmo que não fosse numa percentagem votante a pensar grande - poderia ganhar digamos nos pesos leves, se houvesse essa categoria no campeonato mamário. De qualquer forma as tetas são duas, o que por exemplo os homens podem dizer dos testículos, são dois, mas não podem dizer da gaita. E os testículos, mesmo em top less, nunca terão a beleza de um par de seios, têm aquela costela amarfanhada pentelhuda e ainda não há que lhes meta silicone – não tardará claro e chamar-se-ão as bolas de borracha sub-mastro, para usar um termo naval que, entre nós, é recorrente desde Vasco da Gama.
Mas não esqueçamos que as mamas são um órgão vital, amamentam e quando não começamos por aí a nossa vida exterior, quando abandonamos interior e a placenta nos deixa, mesmo podendo fazer o nosso caminho sem relação directa, labial, com a mama, parece que se fica sem as resistências adequadas e certamente sem o que na escola de chupar faz a diferença entre a consciência real de um mamilo e a de uma borracha – se fizessem isso com os gelados, se lhe tirassem leite e fruta, cacau, o que aconteceria ao planeta verão? A borracha é um progresso, como o top aliás. Sabemo-lo.
Estou a pensar na princesa agora com fio dental ou mesmo sem fio dental. O que seria mostrar a ausência do fio dental? Os fotojornalistas de coisas íntimas e ínfimas só sonham com isso. Mas mais escandaloso seria mostrar os intestinos da princesa através de uma ecografia intestinal clandestina do tipo sensacionalista, isto é acrescentado rosa ao rosa intestinal através do fotoshop pluricromático. O que nos diria o intestino da princesa de especificamente monárquico? As suas voltas seriam como as ameias da coroa que lamentavelmente usa pouco? Eu acho que a princesa deveria usar gola alta, coroa e não abrir a boca para não mostrar o céu-da-boca real. Esse seria o comportamento adequado. Não é ela princesa? Para que se meteu a top less? Será porque uma princesa inglesa só poderá fazer top less por serem palavras inglesas? Se estivesse com as mamas à mostra e não em top less não se passava nada. As pessoas diriam: está com as mamocas de fora e mais-nada, ou então, as mais conservadoras diriam, não tens dinheiro para o soutiã?
Não quero lembrar as coisas tristes em relação às mamãs e porque atraem as mamas doenças mortais. Porque exactamente são fonte de vida e dor é aí que a morte ataca. E a morte está-se nas tintas para o top less, não se vê muito esta senhora omnipresente e potente, nem a ler sensações, nem a frequentar painéis publicitários, não desmorde da sua coerência nem do caminho implacável que traça para cada um. Esta questão também são mamas, as mamas de que todos vivemos e que deveríamos, mesmo as mais banalizadas pela sorte do flash – as tratadas a preto e branco sem flash nem digital são as mais artísticas claro, com destaque para as tratadas a sépia - olhar com doçura reverencial (isto do lado da idade que em cada um faz cantar a memória de algo que já não pode ser memória sensorial, mas a imagem projectada disso para trás no tempo).
O que me choca mesmo é o silicone e pensar que muita gente faz amor, ou literalmente pratica borrachices, entre borracha e borracha. Bem sei que a borracha é dúctil mas também sei que não se eriça, que o que se eriça necessita de esticar a pele.
Olho para as mamas da princesa e fico triste, são muito pequeninas, como poderá ela vir a ser rainha? E eu até gosto de pensar naqueles que têm esse privilégio de todos os dias colher um par de maçãs sem que elas desapareçam. Oh Senhor: perdoai-me o disparate, será também Vosso e consubstancial?
fernando mora ramos

Primavera em Setembro, 15

Na realidade o clima está doido e a Primavera chega em Setembro. Mas não será assim que o real muda, sem que se perceba bem? De repente mudou e não mudo no momento da mudança, foi mudando após o momento da mudança. Não será a mudança dos paradigmas lenta, imperceptível? E as rupturas não serão portas abertas a um novo começo? E não será que tudo o que é vertigem se torna subterrâneo, menos visível e lento e depois emergente e emerso, visível fora de um tempo. Não haverá desconexão entre o tempo e a consciência do tempo? Estamos maduros para outro pulo, penso, um pulo para melhor. Este 15 de Setembro não teve tanques nem cravos em sítio de baionetas, mas teve por certo um modo de raiva claro, preciso de programa e a consciência de que pode de facto ser de outra maneira, há alternativa, a sua negação é um dos embustes ideológicos mais fascizantes que temos ouvido e é por isso que os álvaros e os cratos e os passos e os gaspares e os viegas, esses hipócritas, devem ir de cana. Vamos deslocalizá-los para o off shore neoliberal para se converterem em moeda de troca – se são criados servis do financismo, o melhor mesmo é convertê -los no que gostam, euro e câmbio, taxas, convertê-los em taxas de juro. E podem levar a naftalina toda com eles, mais a trampa que os molda e conforta, os popós de marca, os 32 do serviço ao Primeiro para dar a volta ao off shore, os neoliberais compram ilhas.
Interromperam Abril há tempo já significativo e instalaram uma democracia desqualificada e vulgar, uma ditadura com algumas subtilezas libertárias para o pagode que desejam em povo curtir distracções, um filme de série negra para 1 estrela. Os dinheiros europeus foram para os bolsos de uns tantos e os governantes servem esses enriquecimentos ilícitos de há muito, eles próprios só pensam em capitalizar quando acedem ao mando que podem – são mandantes mandados como sabemos. Eis o meu romance deste 15 de Setembro.  

José Fontana

Nem sequer lá chegámos, eu e a Lena, à Praça José Fontana. Ali, ao Saldanha, um rio lento de gente a sorrir levou-nos. E deixei-me ir, o ritmo conveio-me e fui logo tomado por um enorme sentimento de estar a ser corrente, um com muitos outros e não um na massa, um como um elo de articulação perfeita de todas as diferenças autênticas, não miméticas que “querem as suas vidas” – o objectivo despe-se de vocabulário ideológico e fala simples e claro, vidas em vez de não vidas. E o que serão não vidas no pico construído de uma sociedade rendida ao consumo? É o modelo que é questionado, as pessoas não se confundem com uma par de lentilhas exibível, a escola degradou-se a um ponto inimaginável, os transportes, os salários, os horários, as relações laborais, o ordenamento do território, o fosso entre os ricos e os pobres, o desemprego. Eis a não vida.
Deslizamos: carrinhos de bebé, crianças de metro menos que meio, ali de mão dada com o futuro, ali em baixo, a clareira fazendo-se para terem a porção de céu que os alimente de ar, deslizamos, homens, mulheres, mulheres jovens, mulheres e mais mulheres, este Setembro foram elas os nossos capitães, capitães tranquilos e determinados. Estamos juntos mas não amontoados, é uma gente compacta mas essa união é feita de delicadezas, nos olhares, na alegria contida, no à vontade dos corpos, nas palavras de ordem, na informalidade poética dos gestos, desprendidos – o cartaz da Viera da Silva veio-me aos olhos - nas palmas das mãos elevadas ao alto em direcção ao helicóptero que em directo mostrava ao país que éramos o imenso delta de um mar a crescer e a convidá-lo, a vir ainda, ao povo sentado – acenar ao helicóptero era acenar a quem nos olhava, fomos um milhão na rua e outros milhões nos ecrãs e noutras partes mais incertas, muita gente tem limites inultrapassáveis de mobilidade, não pôde estar mas esteve.
A marcha vai sem gritarias, nem histerismos, com convicção e disponibilidade para mudar mesmo, MUDAR, BASTA DISTO, o governo para a rua, a troika que se foda, professores, trabalhadores de todas as profissões, artistas, actores, jornalistas, electricistas, operários, donas de casa, donos de casa, desempregados, gente com muitas rugas, gente sem rugas, grupos de rapazes e raparigas, criaturas de meia idade assente, muitos outros na casa dos vintes e trintas, as vidas a tomar forma, frases à solta, um cão maior que o dono com um cravo na coleira, tipos com lenços da Palestina, buzinas e mais buzinas, uma orquestra de câmara de buzinadoras com um rapaz a solista agarrado à tampa de uma panela, cartazes de trazer como a mochila, frases em línguas de pano escritas sobre as nossas cabeças fazendo a largura da avenida – foram avenidas o que calcorreámos juntos – sobre o Serviço Público televisivo, sobre o emprego, sobre a fome, sobre os salários de miséria, sobre a sujeição a um governo exterior, sobre Portugal, sobre PORTUGAL, sobre o futuro e aquela frase na Praça de Espanha, aquela frase a que retiraram o P que dizia que CADA UM TEM DE FAZER A SUA ARTE, isto é, a PARTE DE CADA UM É FAZER A SUA ARTE – ligámos portanto, sem vazio humano, duas avenidas entre duas praças e conseguimos o impossível, extravasar do delta da Praça de Espanha, o destino alcançado, por todos os seus afluentes, um segundo movimento natural que se expandiu por Lisboa sem margens, como aconteceria se fossemos água e claro, água transparente, límpida, como eles não são, ocultos que são, secretos, corruptos, golpistas e demagogos – é deste tipo de gente que estamos fartos, deste tipo de gente que afinal nem compreendeu Abril e é puro revanchismo. 
A Lena nem se lembra das pernas, o que lhe vai no coração é fundo, vem de muito antes de Abril o desejo de um país igualitário e justo, o país que está na Grândola, o hino de Abril, em cada rosto igualdade. Falámos de 73, da sessão da Baixa da Banheira em que intervinha um Aníbal – não confundir - que tinha as barbas do Fidel, uma sessão com polícia no palco, vigiados. Eu, chegado de Lourenço Marques, abria os olhos. Uma torrente de sensações futuristas na pele logo prospectivas portanto, surgiu, Abril na mão e corpo, ali, a memória é física e por cumprir, Abril está-nos nos corpos e por fazer. E lembro-me do dia: quando a Marília nos telefonou, muito cedo nesse dia de Abril, seriam 6 horas da manhã disse: “não saiam, há uma revolução”, o tempo que levámos, eu e o Carlos, a chegar ao aeroporto foram minutos. Estávamos na Avenida da Igreja, em casa do Carlos e é agora o Carlos, neste 15 de Setembro, o meu primo Carlos, com quem moo à lupa as coisas da política desde os 15 anos, desde Moçambique, que me surge, mais a Augusta, num ponto do rio lento um pouco à frente da nossa entrada, estamos todos ali e como é prazeroso andar nestas vias rápidas à velocidade do desejo, assim, lentos de querer as nossas vidas. E tudo parece encaixar-se sem esforço. Há qualquer coisa de único: se em Abril algo explodiu por se quebrarem amarras e as pessoas procuraram identificar projectos e soluções que desconheciam e estavam a formar-se, agora o projecto somos nós, não delegamos a nossa voz em ninguém, representativa é a nossa presença múltipla e ampla, somos o país, somos a manifestação mais clara e civicamente expressa de um desejo: o país deve fazer outro caminho e, por assim dizer, encontrar as condições de surgimento e construção desta disponibilidade que aqui manifestamos de construir outro país, a nossa energia é imensa e somos muito mais que qualquer crédito bancário, o país necessita do nosso investimento enérgico, o país somos nós cá a transformá-lo e não nós lá em culto de nostalgia por obrigação porque aqui não há lugar – que terra é essa, de lotação esgotada, a pôr os seus à margem e arvorando sempre com os mesmos porteiros e donos?
Assim, deste modo liberto e aberto, só experimentara uma vez em plena Greve Geral em França. Na paragem do autocarro os civis paravam e perguntavam: vai em que direcção? Eu levo-o. Eles substituíam os serviços públicos para aqueles que necessitavam mesmo, era a vida a mudar, era prática de lógicas solidárias a brotar espontaneamente, gente bem formada, cidadãos. Foi assim que cheguei ao Charles De Gaulle.
É a vida que é importante, o modo como as relações se estabelece, o modo como se fazem as coisas, o modo como o trabalho é uma liberdade e um direito, o modo como não teremos de ser escravos de ninguém, nem assalariados de quem nos pode pôr na rua por dá cá aquela palha.

Um abraço Madail

E quem aparece agora? O Madaíl, de papel de rascunho na mão. No dia seguinte li a prosa no DN, prosa pictórica, levado pelas palavras como se estas fossem os sorrisos partilhados, um dia antes. E o Madaíl estava nas nuvens, senti-o nas nuvens, como um dançarino que justamente faz isso, tira peso ao peso, mas no rosto habitava uma exaltação contida, um impulso em direcção ao que não veio e que queremos que venha, outra vida, outro mundo. O Madaíl, magro e seco, abracei-o e ele abraçou-me. Um aparecimento entre tanta e tanta gente ali por alturas do Prédio FMI acendeu surpresa boa. E nesta parte do percurso as vaias assobiadas e os UHUUUSSS ganhavam força. A senhora do lado diz-me “são os escritórios da troika”, juntei-me então aos uhhuuuuus. E UUUUHHHUUU   UUS para a frente. Não é fácil um UHU agudo com matéria tão grave. A torrente alenta o passo, há um cordão de polícia ali, mas a coisa está calma até que estoira um petardo. Penso, será um infiltrado? Um prá-frentista de menos miolo? É necessário cuidado. Eles querem pretextos. Mas a surpresa maior foi que os polícias também pareciam pessoas. Aguentavam as tomatadas e fumos e mantinham-se mais ou menos tranquilos. De algum modo alguém lhes dissera que cacetada e democracia não colam. Será? Parece que houve um comunicado do sindicato nesse sentido. A tomatada instalou-se no passeio temporário do FMI – afinal era o escritório do FMI – dando uma cor inusitada aos lambris e calçada portuguesa. O sinal de os querer fora daqui ficou bem impresso no chão, os tomates como se sabe são uma fruta usada em todo o tipo de instalações e creio que quem os atirou pensou que estava de facto a fazer a sua parte, a sua arte. O Madaíl despede-se de folheca de bloco em punho e vai escrevinhando frases e perguntas. Não usa vídeo, é jornalista de escritas e anda de caneta em punho. Foi aliás um aspecto que me alegrou e surpreendeu, a quantidade de jornais de parede manuais, a quantidade de materiais elementares usados na construção de frases e a variedade de soluções gráficas de tipo artesanal e imediato, foram uma característica deste magnífico encontro humano na era em que o computador pode tudo, o pior do mau gosto gráfico. Muita coisa escrevinhada à mão por quem só usa computador e praticamente nada dessas novas tecnologias que, na realidade, foram essenciais no trabalho de mobilização, trabalho este que foi um engrossar da corrente entre os que o fizeram e os que vieram – o facebook é um instrumento de várias faces mas um meio essencial de combate.

Telemóvel

No meio do imenso Amazonas de gente quantos somos, perguntávamo-nos. Quantos seremos. No primeiro Primeiro de Maio éramos 500.000 mil – ouvi o Rosas falar de um milhão, seríamos? – Como fazer? E lá usei o telemóvel, numas quantas fotos tiradas segundo a técnica do periscópio. Braço ao alto, esticado, telemóvel na ponta dos dedos e zás. Mas nada, não conseguimos ver as pontas, a manifestação é gigantesca, é inumerável, não cabe em nenhuma estatística. Não foi por acaso que no dia seguinte nenhum defensor da austeridade, onde se meteram, andou a fazer combates de números, o ridículo seria insuperável. O povo não se pode reduzir a um número, nomeá-lo nunca seria um acto estatístico contra outro acto estatístico, dar-lhe como nome um número é uma aberração, um esquematismo de contabilista por fanatismo. Os do costume engoliram e calaram. Pensam que é episódico. Mas como dizia uma senhora: “somos pacíficos, somo um povo pacífico, mas até ver…” Eu estava pasmado, a senhora teria os seus quarentas e era formada em gestão. As coisas estão assim, há uma disponibilidade de combater que não tem os limites da sensatez que se prega às criancinhas para serem tão bem comportadas que só desejam mais tarde partir a louça toda contra o seu próprio medo de ser fora das baias. A imagem salazarenta de um povo ordeiro é diferente da imagem de Abril que canta que o povo é quem mais ordena. Os manifestantes ganham rapidamente a consciência que a legitimidade conferida pelo protesto de uma imensa maioria do povo português acaba com a outra, a de umas eleições refém de uma crise imposta pelo financismo, pela creditarização da economia contra a economia real e a nossa independência real, nacional mas também, alimentar, económica, de opinião – não somos de patriotismos abstractos e o nosso país é o dos exilados exteriores e interiores, aqueles que sempre foram afastados justamente por serem os melhores e não servis. Sabemos como grassa aí a mediocridade, também é esse o combate, essa forma de corrupção que se chama inveja há que estripá-la, e o medo também, o medo de que falava o Gil filósofo – que dirá disto?
Que liberdade é esta em que nos meteram que leva o Siza Vieira a falar de ditadura e o Souto Moura de um país como uma sala fechada sem oxigénio? Não, aqueles que ali vão sabem o que querem e o que querem também já não cabe nos partidos. Só uma solução suprapartidária apoiada por partidos mas que escolha os melhores governantes num regime aberto e um programa de acção que não faça da meta do défice o objectivo – mas sim a economia real, o emprego, a democracia e a liberdade de opinião e a qualificação dos portugueses – pode tirar o país do buraco. Muitos ali ao lado gritam o exemplo da Islândia que, mesmo que seja numa escala de “câmara”, não deixa de ser exemplo, isto é, de ter uma potência modelar. Os laboratórios são isso, espaços em que se simulam coisas numa escala que fala da outra.

A curva com senhora de 90 anos ou mais à janela

E chegamos ao Campo Pequeno. A Praça de touros lá está mas ninguém dá por ela, os olhares convergem para a praça de Espanha. Já passou uma hora e tal, extraordinário. Fizemos 2/3 quilómetros? A Avenida da República vai a transbordar, na curva metemo-nos no passeio da esquerda, já na Avenida de Berna, faz um sol bestial  etemos de nos acautelar. O tempo manifestou-se também a favor, ajudou a festa, a luminosidade não é agressiva mesmo fazendo calor de Verão e pouco depois estamos em pleno sol de novo. 
Numa janela do lado esquerdo, primeiro-andar alto, uma senhora com mais de noventa anos, erguida, o corpo direito na janela, quase marfim o pescoço alto, o rosto seráfico, como é raro ver, olha insistentemente a multidão com um olhar fixo. Está tão pálida que se estranha a coragem. Terá que idade? Cem anos? É provável. E o que pensará ela? O facto de continuar ali imóvel o quarto de hora que a tive na janela fez-me pensar que se estava ali queria estar connsoco também, com aquela cidade que vai ali, a cidade pode ser assim, alegre, de uma alegria sem preço nem marca, capaz de dizer que há alternativa, há alternativa sim, há o que podem ser as nossas vidas - quem é capaz de nos parar, existem pinochês e há espaço para pinochetadas mesmo na Europa de merda em que estamos? O que ali começa, onde estamos e nos juntamos, será difícil de travar.
Logo a seguir num segundo-andar à direita mãe e filho tocam, cantam, ele mais comedido a senhora batendo desenfreada numa velha panela. E envia mãos de beijos em carradas para quem passa.

A monarquia

E de repente uma bandeira monárquica, agitada, dançante e única, bestial, é impensável. Dança de modo nada monárquico, anca á solta, com muito movimento, estão a ver o Duarte a dançar, numa velocidade nada monárquica, está ali e ninguém a olha de lado, pelo contrário, dá um pouco de cor e mexe-se bem. Estamos disponíveis para diferenças que estranhamos se possam afirmar, somos pela alegria do diverso, pelos direitos das minorias, políticas, culturais, raciais, de todos os tipos – quem é que acha que o outro não possa ser assim ou tenha de ser assado? Só os fundamentalistas, de todos os tipos, incluindo os extremistas neoliberais que nos querem ver pobres, o seu modelo para que eles SEJAM LIVRES NA MEDIDA EM QUE SEJAM RICOS é que sejamos como os tais intocáveis que na Índia são a casta desgraçada e animalizada - não será esta sociedade de condomínios um feudalismo de novo tipo?
Já não é tempo de reis nem de rainhas – as tetas da princesa inglesa aí, no deus dará mediático, bem o dizem - e histórias de fadas também não. São memória e matéria de ficção. Tempo de fadas sempre, claro, as fadas que conseguirem ser corpo de invenções de outros em dado momento de vida. Mas reis e rainhas? Com direitos especiais e fortunas? A adaptarem-se agora às lógicas do turismo, como se fossem reis de pacotilha para cambio, entrada de divisas? Mas isso é com cada povo e se há povos que gostem de ter reis é certamente porque a história, tendo-os expulso, ainda não acabou com o que é a inércia das forças residuais – a história, mesmo acelerada, é lenta do ponto de vista da transformação das relações sociais. O sinal disso a bandeira que dança, ali, na manifestação, de uma forma que não tem protocolo?
Ao chegar à Praça de Espanha não sabíamos para onde ir. Onde raio estará o palco? Percebemos rapidamente, o Carlos, a Augusta a Lena e eu, que naquela escala não haveria palco possível. E todos sabemos de Woodstock, do pequeno-almoço na cama para quatrocentos mil com chuva. Telefono ao Rui Pedro Rebelo: então Rui onde é que é o palco? Que não sabia, tinha saído para comprar uma água e tinha vindo parar à Praça de Espanha. Então mas não és do Precários Inflexíveis? Não, que não era, mas estava com eles. Então onde raio há um precário verdadeiramente inflexível que nos diga onde são os palcos? Necessitamos de um desenlace, de levar dali texto metido no coração, de activar o músculo cardíaco com o sentido do que estamos a viver. Mas ninguém previra o tamanho que a coisa tomara. Era impossível falar para aquela gente toda. As pessoas falam agora em pequenos grupos, umas para as outras, falam em desejo de ouvir alguém a traçar resultados e consequências. Por ali o semáforo está verde. Estará com receio de ficar vermelho ou sou eu que só o vejo verde? Mas está verde garanto. Um verde esperança, pintei. Não se olha a cor de um semáforo que diz para seguirmos ou pararmos. Ali estava verde e continuava verde. Um milagre electrónico? Aparece o Zé, o meu irmão mais velho. Vem com o seu ar blasé composto e traz um bronzeado açoriano, está surpreso como nós mas é talvez um pouco mais céptico, tem levado fortes bordoadas no salário.
Despeço-me do meu primo Carlos que logo me telefona, já do Campo Pequeno, a dizer que a manifestação não terminou, que está a chegar gente. Já tinham passado mais de duas horas e começamos a andar em direcção ao Quartel-Generl, passando à Gulbenkian, à da Gulbenkian como se diria no Alentejo. Um jardim magnífico, uma instituição que desafiou pela qualidade e qualidades – saudoso ballet - Salazar e Caetano, que deu muitas alegrias ao país e que agora, um estudo idiota, diz que está num lugar não sei quê num ranking criado por cretinos que nem sequer perceberam que a Gulbenkian é uma das jóias da coroa caída do céu e que é uma instituição privada, sem dinheiros públicos e portanto de outro ranking. Fala um bolseiro, claro, mas digo verdades.
E continuamos. Toca o telefone: é o Paulo Calatré a dizer que no Porto tinha sido uma grande manifestação, extraordinária manifestação, forte, animada e com propósitos claros. O mesmo me é dito das Caldas no dia seguinte, a Ana que esteve lá. O mesmo vejo que aconteceu em Coimbra, em cerca de quarenta cidades. É incrível. O país está na rua por todo o lado, a macrocefalia por um momento parece desaparecer no gesto comum das cidades.
Nunca foi tão claro que a rua é útil, que é um modo particular de dizer coisas, é o modo particular de dizer coisas quando a vida se torna insuportável – a rua são as imensas páginas de um romance que os corpos escrevem naquelas horas. É de facto necessário correr com estes tipos do poder. Já muita gente disse que são perigosos, estes tipos são perigosos, são insensíveis e têm uma agenda predadora, são capazes de desmantelar o país mais do que está e de o hipotecar para sempre, de fazer de Portugal uma imensa favela abandonada e dos portugueses famintos, turismo de miséria, reserva índia. Vou a chegar ao carro e está uma senhora num caixote de lixo a tirar de lá coisas, toda a gente que passa olha constrangida. É isto que os filhos-da-puta querem, penso eu.

São Bento Parlamento

Dou pelo Parlamento – o P grande é para se ver melhor, como os dentes do lobo querem ser pequenos, por oposição - cheio de gente já no British Bar, o Bar do Cardoso Pires, ao Cais do Sodré, que frequento a espaços longos de tempo desde 73 e onde me dou com a tribo moçambicana. O quê, foram para o Parlamento? Estivera lá recentemente numa manifestação em que alguns polícias à paisana espancaram um jovem por este estar a pisar a grade de segurança entretanto caída. Todos nós a percebermos que era um exaltado, um rapaz perdido no seu excesso. Mas os à paisana foram implacáveis e somaram porrada no corpo do rapaz. Uma brutalidade e uma estupidez, falta de cabeça que agora não verifiquei. Vou para o Parlamento e vou até lá, ao cimo das escadas. Olho o rapaz polícia que está diante de mim com o seu enorme capacete, uma cabeça de escafandro, deve ser à prova de tudo e mais do que tudo, à prova de palavras, está lá dentro encerrada, a cabeça, está suspensa a cabeça, não tem cabeça, está refém no capacete. Lembra-me a estátua de Lagos, do Cutileiro, D. Sebastião de armadura, elmo e viseira, mas sem força para que estes cumpram o lugar cimeiro no corpo adolescente. Ali à frente um rapazola a ganhar horas extraordinárias e subsídio de risco. A dívida pública cresce ali ao minuto. Eles não acham que as polícias sejam gordura estatal claro, nem concebem meios de prevenir crimes e roubos que passem por alternativas à repressão e obviamente por uma escola em que a violência não seja uma pedagogia diária, isto é, contaminada e dependente dos conflitos que são exteriores, uma escola que prolonga a televisão e a deseducação, como estes tipos querem e como os professores combatem de há muito. Não há solução para a escola nas lógicas massivas, isto é claro e a qualificação passa justamente pelo combate à massificação. O teatro tem aí o seu lugar como responsabilidade de exercício público, é a grande escola da vida e de clarificação dos ocultos, da abrangência total do que é diverso, das relações humanas e de todas as variedades de fenómenos e é presencial, como as aulas dos professores, um teatro. Essa seria a razão da multiplicação de teatros escolas. E essa razão de estruturação democrática leva à outra, à liberdade artística.
Estou a olhar o rapaz polícia e a pensar, está um calor tramado, deve ser lixado estar de capacete e imóvel. Ele nem troca os olhos, o olhar é fixo. Estes que estão aqui em baixo, à minha frente, fazem de barreira, é como se fossem a estrutura metálica. Uns que estão nos degraus acima comandam. Mexem-se muito, andam de um lado para o outro. À esquerda, pelo relvado acima, mais polícias. Espalhados entre arbustos e por assim dizer a cavalo no desequilíbrio. São uns tantos e estão mais descontraídos. Olho para o rapaz e digo-lhe mentalmente, tira isso, pá, está um calor maluco, vai beber um fino, eu não digo nada ao chefe. Ao meu lado uma miúda um pouco exaltada berra sozinha invasão, invasão, ninguém a segue. As miúdas andam tesas, penso, estão na linha da coragem. E volto a olhar o rapaz, os seus olhitos estão mais pequenos, a cara parece um estranho peixe dentro de um aquário, o nariz, os olhos, tudo em compressão e transformado pela lente blindada, lá longe, uma cara no fundo do aquário – este tipo está escafandrado, invento. Do outro lado surge um “junta-te a nós” bem berrado, alto, seguido logo a seguir de um “tira a farda”. Há tensão e tranquilidade ao mesmo tempo, não há propriamente guerra. Como se de um lado e de outro se soubesse que aquele braço de ferro não é exactamente com eles, os polícias, mas com os outros os que os usam. Que os manifestantes estão ali e que esse facto de estar ali significa que querem outro país e estão dispostos a derrubar este poder ilegítimo – o estado de excepção, ou de emergência financeira, se legitima o ilegítimo também legitima o derrube dos que criam a emergência pondo-se à margem da lei e da constituição. 
O telefone toca, é a Isabel: “és maluco, sai daí, olha a tua perna”. Como é que sabes que estou aqui? “Vi-te na televisão, apanhei-te no meio de muitos, ali à frente, a dois passos dos polícias. Sai daí.”
O admirável mundo contemporâneo é de facto extraordinário.
Setembro 15 foi 25 de Abril sempre.
fernando mora ramos

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O nu de Harry, os assessores e as camas do IKEA

16.000 cavalos-marinhos mortos e secos, para exportar para a Ásia. E onde se passa esta mortandade? No Peru. Um animal extraordinário, beleza pura para peruanos e outros povos de alma índia, que, numa outra cultura, é um bem ansiado como elixir erótico, leva os peruanos pobres ao exercício de uma mortandade em massa e alguns outros mais bandidos a organizar a distribuição globalizada clandestina, notas contadas nas mãos sujas de mercado negro destes últimos que não chegam por certo aos pobres caçadores na mesma medida.
16.000 cavalos-marinhos, estão a vê-los, naquela dança estranha, na vertical, na água móvel que lhes determina o ritmo? As imagens na tela aquosa ganham um fascínio próprio, de câmara lenta com lente que densifica, fantasia inexplicável da criação, como que parida de um nada cósmico preexistente que tudo contém como possível.
Paul Ryan, o segundo do candidato conservador às eleições americanas afirma sem papas na língua que a Europa é medíocre. Não diz o mesmo dos chineses, comandados pelo partido único gestor de um capitalismo americanizado vencedor, nem do Texas, nem da Índia das castas, nem se lembra da querida Arábia Saudita que construirá em breve uma cidade só para mulheres, já que nesta Arábia que não é das mil e uma noites trabalhar ao lado e com homens a lei primitiva não permite. Segundo a sua biografia fez de tudo, vendeu hambúrgueres e foi paquete, grandes experiências, self made man. E a Europa é medíocre, diz Paul Ryan, porque não tem ambição. A ambição do lobo solitário, daquele tipo que quer escalar os himalaias de riqueza que surgem como oportunidade a cada um se cada um for obcecadamente ganancioso e destinado a winner, coisa de genética da predestinação. O indivíduo individual tem de ter como pátria ilimitada a sua liberdade de vencer. O que é definido como interesse de todos deve sujeitar-se ao império desse cada um que vença e estabeleça os limites de vida dos outros. Este senhor defende que o bem público é secundário, dispensável, descartável e que a sociedade é um espaço de predação em que o mais violento/esperto, desprovido de escrúpulos e qualquer referência ética – é o bem comum a defini-la – pode e deve servir-se de tudo e dos outros para impor a sua ambição. Ao preço do que for. Se um outro ambicioso, maior do que ele próprio seja, o crucificar num destes tiroteios frequentes nos EUA com cinco balas em forma de cruz que dirá Ryan antes de soletrar o último desejo? Falará dos limites da liberdade de cada um? É que não há forma de enriquecer apenas trabalhando, não existe na história económica forma de acumulação primitiva de capital que não seja ilegítima, sabe-se. Este Ryan é daqueles tipos que usará certamente o próximo massacre – a produção está em alta - como oportunidade de venda de armas. É uma criatura rupestre. Ofereçam-lhe uma tanga europeia, daquelas que o Presidente Barroso criou há muito, sempre será um avanço civilizacional.
No jardim da Estrela a IKEA lança a sua nova vertente de negócio, Hoteis sob a forma de hostal, dinheiro a “construir” a partir da bolsa da massa dos turistas errantes, transportadores de mochilas e parentes. Meia dúzia de incautos, deitados em camas colocadas na álea central do jardim, casais na maioria, declaram que aquela dormida ao ar livre vai cimentar os respectivos amores, conjugais nupciais ou pré, para o resto das suas vidas. Não há melhor publicidade, longos minutos de direito de antena em todas as televisões para esta publicidade encapotada – que lei para esta ilegalidade? Valia mais que o IKEA dotasse de boas camas e mesmo casas, terá dinheiro para isso, toda a população dos sem-abrigo da capital. E também que as televisões não fossem atrás da primeira suposta parvoíce que lhes garante audiência fácil. Na realidade o golpismo, mais light ou mais violento, é a “ética” do negócio e este não tem fronteiras, bem público e interesse privado dando as mãos na mentira perfeita. O kitch tem destas coisas, por cá chama-se saloiice burgessa, também em franca expansão.
O Príncipe Harry foi apanhado nu numa coboiada em Las Vegas, sairá à mãe que era de poucas monarquias nas maneiras? No Sun, a primeira página do seu corpo inteiro fez transbordar de excesso a alta taxa libidinal voyeurística que mantém os ingleses nos limites da adrenalina legal, praticantes obstinados que são da dose de perversão definida como politicamente correcta nos domínios de uma especificamente anglo-saxónica e humorada tensão vital porno abrangente. Serão tomadas medidas pelo senhor Cameron para que o rapaz ande sempre de calças coladas ao corpo, pregam-lhas? O magnate Murdoch disse para deixarem em paz o rapaz.
Assange não foi apanhado nu, mas estará na Embaixada do Equador em residência vigiada, a acreditar nos democratas conservadores, pelo resto da vida fora. O Ministro da Segurança inglês diz que mal saia da Embaixada será preso e extraditado para a Suécia onde, como se diz, alegadamente terá violentado não uma rapariga, mas duas – terá este jornalista, na Suécia especificamente e apenas, ganho qualidades de predador alfa com cio? O que é que levará os tribunais suecos a obrigá-lo a julgamento? Provas fotográficas, vídeos? Feitos por quem? Pelas moças?
Os assessores do governo português oriundos de instituições privadas, nenhum deles que se saiba apanhado de calças na mão nem de nu integral, ao contrário certamente dos perversos dos assessores público, terão direito aos subsídios que a todos os outros foram cortados. O que explicará isto? Dois pesos e duas medidas? Mas quem duvida que este é o governo dos dois pesos e duas medidas? Para que serve o que é público que não seja para engrossar os lucros de um micro universo privado cada vez mais restrito?

Fernando Mora Ramos

domingo, 12 de agosto de 2012

Guerra fria

Neste período em que o calor aperta, o desconchavo e o oportunismo táctico tomam as suas pole positions na vida nacional: a produção de fantasias coxas do mais autêntico kitsch consegue ultrapassar qualquer previsão, mesmo a mais avisada da nossa originalidade extrema. A história dos ares condicionados, um pouco sádica para os calores que fazem tendo em conta o privilégio que uns tantos têm de lhes aceder e a tragédia da Casa das Histórias de Paula Rego só podiam suceder por cá, sendo que ares condicionados são um bem universal a que acedemos, como a coca-cola já depois de Abril – em termos fenoménicos, digamos - e Paula Rego uma pintora portuguesa, aqui nascida, de renome e dimensão universal. A primeira história é irrelevante, entretenimento, mas curiosamente mete Procurador-Geral, imprensa entusiasmada e comentários de partidos. Rouba tempo e visualidade, instantes, à novela principal – o fado da Crise - e traz a cena uma figura da política recente, multiplicando-se-lhe os retractos, de lacinho e camiseta burguesinhos a expurgá-la de contaminações proletárias anteriores, nos jornais e tempos de antena. A falta de programas de humor nas nossas TV’S e a sua duvidosa qualidade devem-se claramente a estas erupções de graça natural, arrasadoras da concorrência, que em qualquer momento podem ser A notícia nos nossos tabloides, jornais de referência e horas nobres. Qual será a próxima maravilha efabulada a brindar-nos este verão com contornos criativos tão geniais? Pelo sim pelo não tenham cuidado com as conversas sempre que o ar condicionado estiver ligado – vejam-lhe o prazo de validade - e se o tiverem ligado, ponham-no no máximo, para que o som do aparelho se sobreponha e proteja a confidencialidade da vossa conversa, certamente sobre a NATO ou uma Tomada confidencial da nossa Bastilha, ao Terreiro do Paço ou no Carmo.
A segunda história, esta de um ranking das Fundações – um tal júri conseguiu classificar negativamente a Fundação Gulbenkian, que é privada e que foi o nosso único Abril no tempo da ditadura, vanguarda da democracia e sustento de um Portugal moderno, culto e sábio - aproveita o amolecimento da tensão política para fazer avançar mais um passo a tragédia em curso, a conformação do país a um protectorado, lugar típico de turismos estrangeiros vários – gastronómico, paisagístico, litoral e rural, etc. - em que os museus, em alegre extinção, serão substituídos por novas burricadas, mui criativas. Em plena globalização o número significativo de notícias locais, de disparates nacionais identificáveis com a nossa singularidade – a do traço atávico, miguelista, agora dominante - é sem dúvida feito de verdadeiros campeões olímpicos da regressão cultural e um dado sistémico. Basta uma figura de relevo mediático abrir a boca para dizer uma qualquer coisa e logo a cadeia informativa se transforma numa novela instante. 
Desconchavo é: confundir intencionalmente instalações de ar condicionado com espionagem – a especialista do frio só agora se lembrou do que sabe ou sonhou há décadas – acto de imaginação infértil pois diz a sério o que poderia ser um guião dos Marx Brothers: o Chico e o Zeppo de dedos entre fusíveis, perdidos num emaranhado de fios e chipes, escondendo a foice e o martelo tatuados nas maçãs de adão, a montar um captador de conversas contra revolucionárias para o PCP fazer vingar a sua lucidíssima estratégia pró soviética – neste particular há que dizer que associar guerra fria com ar condicionado é de grande rigor político, o frio político e frio fabricado de mão dada, e que um PREC efabulado continua a pagar a factura de um sem rumo actual do país quando, em verdade, o país é de há décadas governado pelos partidos do tal centro móvel (agora à direitíssima) alternante, ora comes tu ora como eu, que o conduziram para o descalabro sabido pelas razões sabidas e que são as de que nos anos das vacas gordas do dinheiro europeu se construiu o actual sistema corrupto pela mão de uma classe de novos ricos que ascendeu cavalgando-o como instrumento.
Quanto à Casa das Histórias que fazer? Terão estes senhores do governo a mínima noção do que fazem? Em que ranking caberá um Júri que afunda a Gulbenkian e ataca Paula Rego? Estaremos condenados à mediocridade?
Curioso é verificar o SEC – Secretário do Estado da Cultura - afirmar que a exposição de Joana Vasconcelos em Versalhes tem de ir para o Palácio de Queluz.
Fernando mora ramos

domingo, 5 de agosto de 2012

Um maneta com fecho-éclair à velocidade do som


Um tipo pequeno e de pele branco suja, três dedos na mão direita, sem a outra, apareceu no meio da rua principal da cidade e alguns lembraram-se do dia em que nela tinha passeado um urso surgido do nada - de um circo, do Polo Sul, ali fugido do degelo ou com fome? O mais caricato foi, na Pizaria, ter comido as bolonhesas perfiladas ao serviço de uma festa de anos com bolo e velas, coisa obrigatória, de assoprar de uma vez, triste.
Ninguém sabia o seu nome e ele não abria a boca, que tinha fecho-éclair, zipe. Se calhar tem dentes de leite e não quer se saiba, pensava o Adam, o primeiro a dar com ele, ao ponto de ter feito uma história que começava “ fui o primeiro a vê-lo e era uma vez um tipo com três dedos”.
Tinha queda para cortar relva, pôr o lixo no balde certo e era veloz como um gato assustado. Alguns e algumas pediam-lhe para dar um jeito no jardim, também penteava rosas, tirava-lhes os espinhos um a um, redesenhava as folhas de uma camélia em círculo e os comerciantes – poucos – pediam-lhe para fazer recados. Corria como o som, igual à velocidade de um gato assustado.
Ouvia tudo mas não falava, não tinha cera nos ouvidos e tinha os lábios zipados pois entre eles luzia o que parecia uma fita metálica. Percebia o que lhe diziam e executava os recados na perfeição – o seu salário eram gorjetas e ninguém lhe dava cama, comida e roupa lavada, pois o seu aspecto não condizia com o ar que os normais achavam que os outros deveriam ter. Era mesmo um estranho, o que é ser mais que um estrangeiro e falava pelos ouvidos, pois respondia ao que lhe diziam com acções. Quem lhe falasse falava pelos cotovelos para ter a certeza de ser compreendido. Não era exótico como se pode dizer de papagaio azul ou de uma arara branca, era um dissidente, mistura entre um chimpanzé humanizado e um marciano nascido em Plutão. Adam é que prosseguia na história que escrevia: “Nascido provavelmente em Plutão, quem sabe, tinha no rosto uma tristeza inexplicável, como a de certas criaturas solitárias”.
Como era um bairro grande de uma cidade grande, com milhares de habitantes e casas habitadas e vazias, prédios altos de paredes escafiadas e descoloridas, uns a abarrotar e outros vazios de gente, vivendas com jardins por medida e casas entaladas entre arranha-céus, os poucos que o reconheciam, chamavam-lhe por conveniência Três Dedos, assobiando-lhe o nome, acentuando as sibilantes, trêssss dedossshh, como se faz ao gato ou cão, trêssdedss jáqui.

Profissão: gorjetas

O desgraçado maneta vivia de recados e o salário eram gorjetas, já sabemos isto não é Adam? Vai ali, leva acolá, traz-me isto e aquilo e mais aqueloutro objecto pontiagudo que parece ser, daqui de onde escrevo, uma tesoura de podar. Trazia tudo suportado pelos três dedos vivos e quando a carga a transportar obrigava o coto do braço maneta ajudava, a carga empurrada contra o peito, parede providencial – um peito forte tinha Três Dedos, de homem.
Era um tipo que nada teria de estranho se não vivesse entre gente toda normalizada, de tal forma que algumas pessoas eram iguais a outras como se se vissem num espelho e se copiassem umas às outras numa máquina de fazer pessoas: faziam os mesmos gestos e diziam as mesmas palavras pela mesma ordem como será na tropa e faziam isso sem que se percebesse quem dava essas ordens como na tropa há os comandantes, eram pessoas comandadas pela formatação das suas próprias cabeças.
O nosso mudo zipado – a fita metálica seria o quê?- não tinha semelhantes a quem pudesse chamar iguais, nem parentes afastados num canto qualquer do planeta, assim parecia, o que incomodava muito o Adam que na história escrevia: “o mudo deve ser órfão e os pais devem ter ido desta para melhor – frase que Adam aprendera com a mãe. Isso deu-se por certo no dia em que ficou maneta, o dia da tragédia”. Nessa altura Adam, o primeiro a vê-lo, escreveu o título da sua versão: “O mudo maneta vindo de outro planeta”.

Não tinha memória pensava Adam enquanto escrevia o título. Adam era na cidade e no bairro a pessoa mais interessada no caso e estava a investigá-lo por conta própria para que ninguém soubesse, tal como os polícias à paisana e os agentes secretos, que também fazem coisas secretas. A história dele era secreta. Adam desconfiava que Três Dedos fosse de outro planeta e assim escrevera, ou de outra Era, de uma Era mais avançada, como se viesse do futuro, o que havia pouco lá no bairro tal como se habituara a ouvir a toda a gente que falava: aqui não há futuro.

Este futuro que era raro passou a ser também o objectivo de Adam, caçar o futuro e distribuí-lo no bairro como um pão necessário, elemento do ecossistema urbano que, tal como os ecossistemas naturais necessita de equilíbrios, por exemplo entre salário e emprego, entre vocação e profissão, entre inteligência e hierarquia, entre relações e diplomacia, entre amizade e cultura, etc., – como se pode viver sem futuro?
Nessa altura Adam pensava que o futuro não era exactamente a linha do horizonte, linha que aliás não o atraía mais que o arame sobre o qual um equilibrista famoso fazia a travessia entre duas janelas ao nível do segundo andar, isto é, atraía-o como outras coisas impossíveis o atraíam – que há de mais empolgante do que tentar o impossível? Voar, por exemplo, não era impossível? E não há um suíço que voa e não é um queijo e tem mesmo asas?
Este equilibrista urbano – também escalava prédios aos Domingos - e o maneta mudo Três Dedos eram aliás as duas criaturas mais inesperadas do bairro e as únicas que para Adam tinham poesia pois faziam coisas inverosímeis, inesperadas e belas sem necessidade de as fazerem a martelo – quer dizer, meter um prego na madeira também pode ter a sua poesia gestual, mas voar ou viver numa árvore como as folhas é outra poesia. A poesia também não abundava, pensava Adam, que sabia que a poesia era diferente do futuro, pois habitava nos interstícios das escritas da pedra e despontava como erva daninha com a mais pequena gota de água tresmalhada. 

Amigos

Vivendo sozinho, infundia medo aos mais novos e os mais velhos usavam-no como um transporte de mercadorias, riquexó de duas pernas. Só atraía vira-latas e gatos de telhado, os caniches e outros quadrúpedes de colo rosnavam na sua presença. Os bichos domésticos tinham o tipo de reacções das pessoas normais que eram os seus donos, só que enquanto as pessoas normais faziam um esgar ao vê-lo, pelo menos os que não queriam recados nem ao preço da uva mijona, os animais expressavam a sua desconfiança com alarido específico, no caso dos cães ladravam em coro de tal forma que Três Dedos subia a uma árvore providencial - havia sempre uma à mão - à velocidade do tal gato assustado que corria como o som corre.

Claro que Adam nesta altura já tentara chegar à fala com Três Dedos para tirar a limpo se era mudo ou não, já que maneta era mesmo. E até o interpelara na rua várias vezes: de onde é que tu és? ao que Três Dedos dizia nada enquanto metia um dos dedos no buraco do nariz para tirar o que seriam macacos –ele também tinha macacos no nariz? De tanto perguntar e não obter resposta Adam respondia a si mesmo: “eu afinal sou de nenhum sítio e não de Plutão, é um planeta que se situa entre um beco e uma travessa, perto da galáxia do Imaginário, numa cidade sem casas nem janelas em que as pessoas têm todas três dedos e o número três tem uma estátua que todos veneram feita de uma areia tão dura como pedra” – Adam, como autor, assumia a voz da sua personagem, dava voz ao mudo.

E como se chamarão os habitantes de Nenhum Sítio? E Adam fazia estas conversas consigo mesmo enquanto olhava o olhar calado do maneta que, à primeira oportunidade, se esgueirava para o lado de lá da rua ou para cima de uma árvore. Mas Adam não desistia de tirar nabos da púcara pois não gostava de ficar por saber aquelas coisas que a curiosidade mandava que fossem descobertas. Tinha descoberto isso no jogo das escondidas. O que é que se faz nas escondidas? Descobre-se o que está escondido. Ora a realidade tem muitos escondidos por descobrir, tal como as pessoas.

Circo

Três Dedos era um acrobata espontâneo, à força de subir árvores e paredes fazia-o com arte, os dedos que tinha faziam milagres de destreza e figuras de contorcionismo impossíveis, geometrias, triângulos e até um meio círculo com o dedo do meio de ponteiro da velocidade – sem saber porquê Três Dedos que pensava muito mesmo sem falar punha os dedos nessa posição de mostrador da velocidade quando fugia para cima das árvores para ter uma noção da velocidade da fuga: era um espírito científico no corpo de um palhaço-acrobata de circo.

Era muito imaginativo, capaz de fazer o pino com os três dedos, assim de estaca, espetados na areia dura, ou de se pendurar de um ramo alto a fingir que era uma preguiça ou um macaco ou uma cobra. As preguiças fazem o máximo que podem, para fazer o mínimo que querem, ou melhor, para não fazerem nada, o seu ideal de vida é o quietismo, a imobilidade absoluta. Como deve ser difícil ser preguiça e estar imóvel, mais imóvel que o homem estátua da rua de cima a quem a câmara municipal devia rodear de um laguinho com água e peixes?
Foi por esta altura que Três Dedos e Torres de Pisa se conheceram – ele era Torres por ser alto e era alcunha, mais um sem nome próprio assim baptizado pelos normais, nenhuma água benta e muito sarcasmo. O equilibrista também não era de falas e se não lhe perguntavam nada não falava – só respondia, não perguntava nem correspondia a nenhuma conversa nem com ah’s e hum ãhm e mesmo sequer um ok. Uma parelha das boas: um maneta mudo e um equilibrista que não usava palavras. O que é facto é que se entenderam logo. É uma coisa que acontece aos deserdados. Um deserdado torna-se amigo de outro deserdado muito facilmente. Também se vê isso entre alguns vira-latas. Como eram dois seres aéreos, um equilibrista e outro que sobe árvores, rapidamente se entenderam e talvez fosse justamente a partir desse contrariar da gravidade genético, com segredo e comum. As pessoas juntam-se por vocações que sentem e elegem. Este fenómeno foi observado por Adam que escreveu: “e o equilibrista chegou-se ao mudo e abraçaram-se num pacto de amizade, nessa altura passou um autocarro de dois andares que fez sobre os dois uma sombra alongada e funda. Nessa sombra, depois de se abraçarem, o maneta estendeu os três dedos ao equilibrista em forma de tridente e este fez imediatamente o pino, o pacto estava feito”. Usavam uma linguagem acrobática. Se os normais levantam um lenço para dizer adeus a uma pessoa chegada que parte num barco ou num comboio, estes falam através de pinos e fliqueflaques. Eram aliás os dois excelentes a fazer o pino, posição em vias de extinção tal como a sardinha. Ora os dois fizeram amizade e sabe-se lá se esta amizade não levará Três Dedos a abrir o fecho éclair e atirar palavras da boca para o mundo?

Amnésia ou Alzheimer?

Estranho era que Três Dedos não soubesse nem se lembrasse mais que aquilo que a sua mão contava, os três dedos que tinha, a mão que não tinha, nem mãe, nem pai, nem natais, nem quarto nem lâmpada de tecto, ruas conhecidas, escola com telhado ou tabuada, apara-lápis, primeira, segunda ou terceira classe, uma surra histórica de um amigo bruto, nada, nem um bibe antigo ou a cadeira da papa. Era como se fosse bicho da selva, um orangotango com infância desvalida, não um orangotango não, uma doninha ou um javali ou mesmo um lince – eram coisas que Adam pensava quando acordava.

Porque seria mudo? Pode-se ser mudo por não começar a falar cedo, no berço? Por não se dizer papá ou cão ou papa antes de começar os primeiros passos. Era bem verdade que, como agora lera, uma rapariga russa criada com vacas mugia como uma vitela. Se eu tivesse sido criado com lobos uivava, pensava. E um humano humaniza-se pelas letras e animaliza-se pela falta delas. Mas o maneta mudo era simpático e delicado. Um selvagem pode ser delicado? Ou teria um trauma e perdera a língua. Tinha língua? Não se sabia, pois nunca abria a boca. Era um grande mistério. Solução? Levá-lo ao dentista: eis o que Adam tramava se um dia conseguisse desviá-lo do trajecto de um recado para a cadeira do dentista.

Nem a falta de uma mão e sete dedos tinha história conhecida. Quando gesticulava uma explicação, o maneta fazia sempre o gesto de alguma coisa que o atropelara com o braço que sobrava, mas como é que os perdera realmente, o que lhe tinha acontecido, fora mesmo atropelado? Ou caíra de um pinheiro em cima de uma rocha aguçada ou fora atacado por uma alcateia de lobos famintos ou fora apanhado por um raio que o atravessara num desses tornados americanos que dão na televisão e que levantam casas como pétalas? Ele nada, nada mesmo, não se lembrava de nada. Seria um caso de criança selvagem auto-domesticada como o homem fizera aos primeiros animais e em particular à vaca e ao seu marido boi? Mas então como era capaz de fazer alguns gestos e fazer recados de uma inteligência mais que animal?
Não tivera adolescência? Mas que idade ele teria? Ninguém sabia. Parecia muito novo e parecia também muito mais velho, tinha muitas idades, não era como as outras pessoas que só têm uma idade. Será que quando se cresce algures, em terra de ninguém, temos várias idades? A idade animal, a idade humana e a idade de se ser vadio e morar em árvores? Os animais não fazem anos, nem têm velas nem bolos de anos. Ora as pessoas têm anos e velas e bolos de anos. O Três Dedos não ligava nada a isso, o que ele não dispensava era depois de fazer muitos recados, por exemplo depois de transportar caixotes de batatas fritas, de que ele não gostava por causa do cheiro a óleo frito, fazer a sesta num galho que conhecia bem, conhecia bem porque tinha feito nesse galho a sua casa, ou cama casa, como os pardais fazem ninho. Levara para esse galho um colchão de praia velho. Não era bem um galho era mais um cruzamento de galhos, uma encruzilhada de galhos e eram galhos que não partiam, de vime, galhos de torcer sem quebrar, assim tão elásticos como ele. Ele era mesmo elástico, ao ponto de em pequeno chuchar no dedo polegar do pé esquerdo pois não tinha nenhum dos dois polegares das mãos, o que fazia pensar em macaco pessoa a qualquer observador. Mas não vimos nós do macaco? Não somos todos macacos, uns mais que outros?

Estrangeiro ou aberração? Entroncamento à vista 

Alguns antropólogos de bairro, treinadores de bancada, começaram a pensar que Três Dedos era uma mutação específica, clara mistura de pessoa com animal, pássaro ou macaco, daí a paixão pelas alturas e pelas árvores. As árvores pareciam para ele parques infantis e ele fazia tudo nelas, escorrega, baloiço, pendurar-se, equilíbrio instável, punha a cabeça para baixo e as dobras interiores das pernas no ponto dos joelhos a fazer de gancho num galho mais forte - para ele, escrevia Adam, “qualquer árvore era um mundo que permitia ver de cima as coisas e estar mais perto do céu, de que gostava muito, pois estava sempre a mudar, como uma pintura, ora azul, ora vermelho, ora zangado de nuvens cheias de cinzento-escuro, ora suave com fundos cor-de-rosa avermelhado, que não eram nada como os cor-de-rosa das prendas, a beijar longamente a linha do horizonte no mar lá longe.
Quando tudo fica preto, quando há um apagão, afinal só podemos ver para dentro, era uma coisa que Três Dedos sabia muito bem, era também um grande observador do seu interior, de tal forma que via mais do que o seu intestino ou coração, via mesmo paisagens e versos a fugir pelo corpo acima, algumas palavras a instalar-se na pálpebra e a dar-lhe sono, como a palavra dormir. Nessa árvore que era casa e mundo Três Dedos tinha uma vez atingido o ponto mais alto, não podemos esquecer que era uma espécie de pinheiro e nesse ponto mais alto tinha feito um pino lateral sobre os três dedos, em cruz, como uma antena de TV, o que só o céu observara pois não havia espectadores no chão. Três Dedos falava com deuses, ele sabia que havia deuses e que eram gregos. E por isso quando havia trovoadas ou as nuvens se moviam muito ele dizia sempre para si que havia problemas, que Zeus se zangara com algum dos outros ou que havia sarrafusca entre os mais novos, entre Hermes e Atena, ou assim, nomes que conhecia de cor sem saber porquê, estavam no código genético. Seria grego?

Entre Zeus pássaros e lagartos

Ele não se lembrava de nada da sua vida, como um pássaro não se lembra, mas sabia coisas como estas dos deuses gregos, sabia que Zeus tinha uma barbas tão grandes que só podiam ser eternas, como o mar é eterno e a matéria. O mar não é eterno? As barbas de Zeus faziam pensar naquele feijoeiro que subia tão alto que era uma escada improvisada para o Olimpo, muito maior que o tronco que levava Romeu à varanda de Julieta, que também era grande. Quantas alturas de troncos de Romeu tinham as barbas de Zeus? E Zeus tinha estas barbas mas também as fazia desaparecer com um gesto, era visível e invisível, tanto se sentava num trono de nuvens como se fundia com o mar ou com o ar. Era omnipresente e omniausente se lhe apetecia e era muito de apetites embora não necessitasse de comer - os deuses mesmo a sério não comem e podem nascer a meio de uma perna, Zeus paria outros deuses a meio da perna, ficava grávido das coxas quando queria.

Estes assuntos, do parágrafo acima, não sabia Adam que o maneta mudo pensava. Na realidade era mesmo a única coisa em que Três Dedos pensava, o resto das coisas fazia, porque a proximidade do céu dera-lhe para ali em vez de lhe dar para colecionar estrelas, planetas e nebulosas, formações luminosas que olhava como familiares, como se tivesse sido posto ali por um cometa ou tivesse aparecido na garupa de uma estrela cadente. Teria caído de uma estrela como os pássaros caem dos ninhos? Tudo interrogações que adensavam o mistério das origens de Três Dedos que se sentia mais pássaro que outra coisa qualquer, voador e que fizera o ninho por pura intuição genética, tal como as crias de urso vão directamente aos peitos da mãe pois sabem que há lá leite de ursa.

Sentia-se pássaro e portanto agia muitas vezes como se o fosse, quase voando quando corria e amando as piruetas como as andorinhas e pousar nos fios eléctricos como as rolas – as cegonhas é que são maradas fazem casas nos postes de alta tensão. Mas mais uma vez uma grande diferença o isolava: não chilreava, nem piava, nada. Já alguma vez perguntastes a um pássaro de que nacionalidade era ou se gosta de cosido? Não, os pássaros têm outra visão das coisas, uma visão de cima e de cima espreitam migalhas e minhocas, formigas, outros são carnívoros mas além disso fazem voos pelo prazer do voo, desenham no espaço, disputam a atmosfera às nuvens.

Três Dedos não se lembrava também de outras partes do que a memória de cada um arranja para sabermos quem somos, nome, data de nascimento, altura, peso, cor dos olhos, nada – ele dizia para si: sou o que respiro, pássaro na alma, transmigrado de bicho aéreo e caído dos céus numa encosta esquecida do mundo, filho das estrelas – ele tinha qualquer coisa de poeta como sabemos, Três Dedos inventava-se a si mesmo e todos os dias parecia poder ser uma variação do que era, tal como os deuses gregos que se especializaram em mutações.
Mas não se dava com lagartos, não apreciava o seu dom rastejante nem gostava das bochechas inchadas de alguns quando se zangavam. Abria uma excepção para o camaleão que, finalmente, para lagarto era um pouco fora da regra pois mudava de cor e tinha uma lentidão maior que a da lesma. Sim, simpatizava com os camaleões e pensava que eram todos míopes, de olhos fora das órbitas, quase cegos, ou a parecerem cegos, como os olhos dos cegos, muito fixos e grandes quando existem.

O expresso estafeta

O serviço prestado como estafeta era eficiente: Três Dedos era um dos mais rápidos paquetes da região. O que lhe faltava para manusear sobrava-lhe em músculo e velocidade de perna, conhecidos os trilhos urbanos como um chofer de táxi, becos, travessas, carreiros mais que ruas entre prédios a beijar-se de se inclinarem como a torre de Pisa e somada uma capacidade invulgar de manter o ritmo na curva mais apertada – um atleta olímpico, um génio da alta competição. À extraordinária mobilidade aérea, esse pássaro interior que o habitava juntava-se o velocista e, característica inesperada, uma capacidade de equilíbrio nas curvas que o tornava um estafeta sem despistes e um concorrente dos distribuidores de pizas motorizados, todos eles campeões de rotas urbanas.    

Os dedos sobreviventes eram o indicador, o mindinho e o polegar. Como não tinha os outros dedos, sem se saber porquê, os que tinha cresceram mais que ao comum dos mortais e mesmo o mindinho era grande, quase o indicador de uma pessoa normal. Podia apontá-lo acusador que surtia efeito, o tamanho a acompanhar a ameaça. A cidade já não sabia viver sem este paquete pois era uma cidade em que havia muitas trocas comerciais e muita coisa comprada pela internet que não era virtual e necessitava transporte. Três Dedos derrotava a concorrência sem saber pois cobrava só o que lhe davam, não fazia preço, não tinha a noção do dinheiro e como não comprava nada, tinha o que queria, para além do ninho e velocidade nas pernas, pois respirava bom ar nas alturas e visitava o equilibrista na casa circo em que morava. Ele era explorado pelos que o usavam mas não sabia. Nas empresas de transportes surgia agora uma vontade de o liquidar, de o fazer desaparecer e havia quem quisesse pôr pregos nos seus trajectos habituais para ficar com as plantas dos pés em ferida. Mas Três Dedos era esperto e tinha uma visão de pássaro, o que lhe permitia também ver tudo na sua rectagurada.

Entretanto Adam prosseguia a sua história de era uma vez um maneta e decidira levar Três Dedos ao dentista, coisa na realidade quase impossível: por essa altura a vontade de muitos de que falasse tinha feito com que o dentista lhe propusesse uma consulta gratuita ao céu-da-boca, dito assim para disfarçar o verdadeiro interesse: teria ou não teria palavras na boca?

No dentista

Três Dedos na cadeira do dentista sentiu-se preso. Este foi buscar uma espécie de alicate para lhe abrir a boca. Ao ver o instrumento abriu a boca e percebeu-se que tinha um céu-da-boca azulado e que além dos dentes, que eram muito pequenos e tinham serrilha, o que era mais estranho era que tinha duas línguas, uma de pássaro e outra de lagarto, a primeira parecida com uma língua de pessoa e a segunda muito comprida. E foi esta língua que se soltou e logo caçou uma mosca que estava na parede do consultório. O mistério parecia desvendado, ele era um híbrido de insecto com bípede. O zipe tinha uma explicação: ele não gostava de soltar essa língua insectívora que o atormentava. O dentista percebeu logo o caso e fechou-lhe o zipe. A língua comprida tinha de estar na gaiola pois ele não a controlava, ela não respondia às ordens do cérebro, tinha vontade própria e uma paixão frenética por insectos. Não acontece o mesmo aos que têm bulimia? Não comem tudo o que vêem? E Adam prosseguia: mas como é que ele então digeria os alimentos? Era quase inexplicável esta questão. Mas logo surgiu uma hipótese de explicação: as línguas também dormem e provavelmente quando a língua comprida dormia ele comia com a outra abrindo um pouco o zipe e comendo alguma gorjeta que fosse paga em géneros. 

O A B e C de um voador

Mas se afinal abria a boca também certamente podia emitir sons e palavras, como qualquer falante, pois quem tem boca aberta vai a Roma. Nunca ninguém o ouvira embora houvesse uma senhora que uma vez parece tê-lo apanhado a dizer ornitorrinco para si, muito baixinho, numa altura em que a sua língua insectívora dormia, assim para dentro, como quem rega um jardim interior de palavras especiais, para cochichar a si mesmo, como por exemplo dizer a expressão: esdrúxulo sentido apaladado, ou a palavra ergonomia ou laparoscopia ou um latinório daqueles que deixam uma mostarda estranha nos lábios ao lançarem-se como acontece com quosque ou tandem e quid.

Faltavam-lhe dedos mas sobrava-lhe curiosidade e o mundo das palavras era nele interior, como o coração e outros órgãos. O seu objectivo nocturno era construir um dicionário íntimo, somar palavras numa ordem apenas sua, fora de qualquer lógica alfabética, associando palavras imagens, como essa de Ornitorrinco a que poderia juntar por consonância rítmica trrinco e inventar Torrinco, a capital da Torrinquia, um país independente um dia destes, ilha ou península, coisa gerada pela placenta oceânica. De noite Três Dedos aproveitava os que sonhava e nos sonhos pensava com muitas palavras. Ora como as guardava para si e não as deitava para fora do corpo era como se o dentro dele fosse esse dicionário que ele queria ser além de ser pássaro e velocista. Era um estranho ser: atleta, misto de pássaro, macaco e lagarto – a língua finalmente denunciara essa co-origem – e finalmente guardador de palavras, um diccionário bípede íntimo, um sonhiccionário.

Um sonho

Muitas pessoas não sabem que Ornitorrinco é um animal, pensam que é uma adivinha, uma palavra para entreter bebés com dores de dentes. Diz-se Ornitorrinco as vezes necessárias e a criança esquece o dente a nascer, coisa assim, também se usa Nabucodonosor, mas essa palavra resulta mais em casos de aperto intestinal. Orni, para os amigos, um bicho especial, como o papa-formigas, a preguiça, a doninha e as toupeiras, de que se fala muito mas que nunca se veem. O ornitorrinco era paixão velha, descobrira-o num cromo esquecido que lhe deram como gorjeta, bicho com bico de pato, anfíbio e põe ovo, cruzamento entre espécies, tal como ele, mistura de pássaro, atleta urbano, lagarto e diccionário.
O Três Dedos, dizia-se, que se calhar falava ornitorrinquenho, a linguagem dos ornitorrincos, difícil de adivinhar pois não havia ainda nenhum gravador que tivesse apanhado dois ornitorrincos a falar um com o outro, nem sequer no acasalamento, a supor que faziam sexo baixinho, sem gritaria, ou que usavam massa consistente para atenuar os ruídos orgânicos – a função da massa consistente é essa, pôr o osso em banho de óleo para não fritar no osso com que faz articulação.
Portanto o ornitorrinquenho era uma língua oculta que nem na Torrínquia se falava, apenas nas tocas onritorrínquicas, como acontece com outras línguas subterrâneas que só se falam no coração do planeta e ainda outras que só se falam mesmo no seu umbigo. Quer dizer: no umbigo fala-se umbigues, mas também se desconhece se algum gravador lá chegou pela mão de uma broca infinita. A que distância estará o umbigo do mundo da planta dos pés de um terrestre de pés assentes?

No princípio era o Entroncamento

Mas tudo começou assim diz a prima ciência que até agora esteve caladinha: o Três Dedos veio ao mundo sem pai nem mãe, nem outra família, nasceu do acaso, do cruzamento de uma estrela cadente com um tubérculo – esta tesa defendeu-a um rato de laboratório muito experimentado na relação entre a astrofísica e a influência cósmica nos estranhos acontecimentos recorrentes no Entroncamento, uma vila portuguesa plantada num cruzamento de linhas de comboio – fora vista uma estrela minúscula, parecia quase a ponta de uma lanterna vertiginosa, a casar com uma batata que virou foto, dado que sorria e dizia “eu sou amiga do amido e tu a minha varinha de condão” antes de esbracejar como um gavião, batata com asas.
Outra tese: que foi visto a boiar num alguidar vermelho num rio que só os espeleólogos conhecem, um rio nocturno e fora salvo por um mamífero voador dessa gruta que o tomara por um dos seus e o amamentara.
A tese da proximidade parental com o Ornitorrinco, bicho capaz de correr os teclados de um piano desprevenido em noites mais quentes, radica na própria memória genética que tinha, que era a única pois não tinha a outra – essa resultou da explicitação e um teste de ADN feito ao ABC que se percebia que também tinha.
Enfim, as teses surgiam como cogumelos.
O mais curioso foi que criaram um Instituto para a Investigação do caso dele, o Instituto Três Dedos.

Milagre genético

E deu-se então algo excepcional. No dia em que adormeceu com o toco do braço enfiado numa ferida do tronco em que habitava, o braço, pela manhã, crescera e parecia um braço normal, assim como apareceram cinco dedos, ainda pequeninos, dedos bebés, primeiro o mindinho, depois o polegar, a palma da mão e os três dedos centrais e tudo como nas plantas que sofrem enxertos. Voltara vida ao que parecia morto e surgem também no corpo pequeninos troncos, folhinhas e por aí adiante. O lado vegetal de Três Dedos desenvolve-se. E as ervas convertem-se em pelos e os pelos em pelos humanos. Era um híbrido de pessoa, era provavelmente um filho da árvore em que vivia.
Por essa altura já a ciência dizia que o bosão de Higgs era o começo do universo e que tudo era diferente do que se pensava a começar pelas catedrais que, na realidade, eram afinal realizações do medo.

A história de Três Dedos não acaba aqui. Mas nada se soube mais.
Oque se sabe é que fugiu com Torres de Pisa para um outro território e por lá ficaram a construir um mundo sem recados nem gorjetas, um mundo em que se faziam muitas experimentações e voos, um mundo que usava os céus como se fossem um papel em que se escreve com asas. 

Final feliz
E FIM – ouvem-se ao longe, na linha do horizonte, aplausos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

METEODRAMÁTICOS

A notícia meteorológica vive umbilicada com o tempo psicológico. Desde que é economia mediatizada do consumo e seus ditames weekendianos gera instabilidade, dados científicos vividos com humor bipolar, a natureza logo mitificada a partir do que a esclarece, a previsão a funcionar como totobola. O incauto consumidor de meteorologia, num mal-estar de impotência acrescida vive a novela do tempo em heterónimo meteo-paranóide, ao sabor das suas viragens, deus irascível ou assassino armado de ultra violetas. O candidato a bronzeado, esponja e camaleão, acrobata de mimetismos atmosféricos, vira barómetro existencial – nunca fomos tão colados à nossa pele.
A história é: nada do que acontece é sem mediação, quando presenciamos algo o filtro das nossas noções e humores faz o seu trabalho de interpretação. O que presenciamos tem também uma escala para além dos limites da percepção. O que nos chega deriva de, foi ou será consequência de um complexo de causas que nunca perceberemos sem instrumentos de mediação – medição - científicos.
Paradoxalmente, na sociedade do espectáculo, a mais científica descrição do estado do tempo transforma-se na mais irracional reacção na recepção consumista. A ciência gera o seu contrário: o medo e a confusão, a decepção. O desejo narciso alimentado pelo grande educador publicitário - a grande escola - não suporta o não, a dor é na biopolítica geral um sucedâneo indesejado, dano colateral, mal vivida e nunca aprendizagem.
O tempo trai-nos com a sobreposição dramatizada dos climas noticiosos, capazes de pescar nas águas instáveis do nosso sentir instante, sensível ao alerta amarelo hoje, Algarve devastado amanhã – ouve-se a meteo e faz-se uma trip alucinada com incêndios, praias de hora de ponta sôfrega desertificadas num ápice.
A anunciada vaga quente e seca que veio mesmo, qual Sebastião realizado, após semanas de tempo inseguro fora do tempo, tempo indesejado, aparece como um excesso que não corresponde à expectativa estival e contraria a fome de ter o bom tempo, já que a crise instaurou um outro mau tempo permanente - ao menos que o sol não seja austero nem imponha imposto, além do Iva do creme.
Somos animais em perda de corpo que não de capacidade predadora e violência ilimitada, agora de controlo remoto a coexistir com o corpo a corpo, drones no Paquistão e guerra de rua em Damasco.
A verdadeira novela do tempo, extrapolada do anúncio meteorológico, ligou recentemente uma calor excepcional a uma descida abrupta da temperatura – põem-te a cenoura diante do olho e prometem no mesmo gesto a chegada do pau, o tempo de gozar é mais efémero que efémero, tens de o correr.
Ninguém tem mão no tempo, nem o pentágono nem os chineses; que saudades do tempo em havia quatro estações, infância da humanidade. 
Tudo isto não é inocente mesmo que não exista por detrás conspiração que possamos traduzir por nenhuma teoria, a não ser aquela que diz que estamos a destruir o planeta pela via do aquecimento global.
Em boa verdade o tempo está doente e nós doentes do tempo, em consonância cósmica e psicologia diária. E o tempo determina tudo, principalmente o que as indústrias do espectáculo, do lazer e do corpo vendem, adrenalina no máximo, fins-de-semana sem nenhuma adrenalina, escapadelas, emigrações massivas estivais, fugas solitárias acompanhadas de outras fugas solitárias e outras práticas induzidas ao milímetro, mas também práticas com estatuto existencial mais remediado, ir à praia na Cruz Quebrada, por exemplo.
Muito se passa no trânsito condicionado e orientado entre a indústria comunicacional de eventos atmosféricos e os modos de os receber. Nas estradas da comunicação não há ciência que resista, os limites da divulgação científica estão aqui assinalados, a qualidade da informação original degenera pela ansiedade da recepção e sua capacidade de dramatizar ficcionando, de modo mais ou menos vulgar – por isso a ciência ou a arte são exercícios que necessitam de condições de significação elitistas para todos, necessitam da generalização dos teatros de câmara contras as dimensões circenses da comunicação massiva.
E continuamos sem saber cientificamente – a novela da ciência também é alimentada, tudo tem de ser sensacional, espectáculo e sem ele nada existe (in vídeo veritas)- o que é que a governação do planeta, o sistema de interacções dos verdadeiros poderes, financeiros e políticos, têm na verdade feito sistemicamente do ar que respiramos, da nossa água, da nossa vida, do nosso futuro.

fernando mora ramos

Qualidade de vida e código laboral

O ar ufano do ministro da economia a referir-se ao código laboral aprovado só pode comparar-se ao de quem só tem prazer com malfeitorias, sinal de perversão mais que de contentamento pela suposta eficiência económica da medida – ser neoliberal é um excesso de normalidade, uma monstruosidade? Num país de salários miseráveis, de que nunca se fala, ou melhor, de que só uns falam como se os salários não fossem números e comparáveis com os salários praticados noutros países e portanto um dado relevantíssimo da economia como vida real, os argumentos para se tomarem medidas económicas têm sempre a ver com a economia e nunca com as pessoas, como se a economia não fosse um instrumento da vida. A confusão estabelecida entre os meios, convertidos em finalidades e as finalidades, instrumento dos meios, prova como a ideologia neoliberal se seduz pela estatística e pelas suas variações, mas não quer saber do que nas estatísticas é gente viva. Quinze, vírgula, uns tantos por cento de desempregados não são relevantes, relevantes são os zero, vírgula, dois por cento que se desçam. Que esses 0,2% que se descem se devam a emprego temporário, sazonal, como agora no Verão, não é relevante. Que os salários reais desçam porque as horas extraordinárias passam a metade do valor, não tem importância, nem se lê como mais lucro do patrão, importante é dizer que com menos salário os patrões vão empregar mais gente, como se isso fosse mecânico e verdadeiro. Mais gente com menos salário, salário que já não suporta as despesas familiares, não é relevante, nem se caracteriza por generalizar a miséria, nivelar por baixo, isso eram os socialismos reais, falanstérios. Não, o horizonte das sociedades neoliberais não é esse, é outro, é o de criar oportunidades individuais, generalizar a precariedade que é estímulo à criatividade individual: o faminto é por natureza inventor e o inventor é automaticamente um investidor porque inventa horizontes empresariais e novos produtos transacionáveis. Donde: generalizemos a precariedade e no horizonte teremos o amanhã que canta neoliberal, os despedimentos são a via do desenvolvimento. Pela conquista da miséria se atinge o paraíso, o self made man saído da miséria em direcção aos céus da riqueza é o Novo Homem, protótipo.
Nunca um projecto de governação foi tão ideológico em nome de uma espécie de naturalização da economia, como se esta fosse uma selva aceite pela via da inevitabilidade da força incontrolada dos mercados e os cidadãos, os regimes que se autonomeiam democracias, uma variável aceite, qualquer coisa que pesa apenas como valor estatístico, indicadores.
Neste grupo neoliberal encontramos neoliberais puros e duros, estritamente ligados à alta finança e conselhos de administração, falam a linguagem da taxa, encontramos outros que se dizem democratas-cristãos mas que nem se lembram do rosto de Cristo na cruz e outros foram sociais-democratas e têm uma noção da social-democracia completamente afastada de um papel equilibrador do Estado em matéria de igualdade e liberdade, direitos sociais e acesso equivalido às mesmas oportunidades para todos.
O para todos desta gente é um para todos que cada vez mais contribui para a elitização da elite – a que não dá a cara e lucra exponencialmente – e para o enriquecimento, alavancado na governação diria, de uns tantos novos cada vez mais ricos que estão de passagem no poder, testas de ferro dos primeiros e dispostos a tudo para realizarem as suas teses dogmáticas – a tal certeza absoluta da via - na realidade tão absurdamente justificadas por lógicas finalistas como os comunismos de caserna que a história provou possíveis. O extremismo tomou conta do poder, um novo terror apoderou-se do Estado. Nada os demove, nada os comove e são todos pais de família candidatos a santos. E se resta nesta democracia aquilo a que o simulacro obriga para parecer o que não é, que é alguma coisa, isso se deve à irredutibilidade portuguesa, identitária, que, como Bartleby, não entra em falsos consensos de normalização pseudo estabilizadora. Não se pode rumar um mesmo rumo em que uns vão parar ao abismo e outros às Caraíbas.
fernando mora ramos

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A questão cultural

O mais estranho disto que se chama cultura e tem uma sociedade própria, é a “harmonia” esquizofrénica da sua expressão pública, a vida paralela dos discursos e sua penetração precária na acção cívica criativa e na vida institucional, na margem e no centro, off e in dir-se-ia na síntese lapidar e anglófila conveniente, já que hoje qualquer acção de relevo cultural é excepcional, Festival ou Capital, excepção e por consequência rasgo de luz que ilumina fugaz mas não faz luz sobre nada, período de concentração e intensidade da fruição – e da acção artística múltipla e “feirante” – discurso pleno e obcecado pelas formas espectaculares da sua visibilidade, mais publicitárias ou mais mundanas, o desfile dos objectos artísticos condenando cada objecto à hierarquizada pertença a uma sequência horizontal caminhando na superfície de um tempo veloz, de expressão efémera/descartável e não ao enraizar da sua possibilidade e potencialidades específicas de entrosamento no quotidiano ilimitado dos diversos corpos sociais, objectos fruídos convertidos em instrumentos já interiores do exercício da percepção do mundo e das leituras do real, espectadores já públicos, escolas já cidade, classes etárias diferenciadas pelas boas razões das suas especificidades, problemáticas politizadas a circular entre os corpos da sociedade, a sociedade a poder de facto observar-se nos espelhos fragmentários que possam expressar e dar espessura às imagens que os criadores sejam capazes de construir com a sua intuição inteligente, o seu talento e treino, o seu domínio da língua e das linguagens – este é o problema de fundo, o da natureza política da arte que não é nem amestrada nem decorativa, discurso comprometido com a verdade dos factos, autenticidade da ficção e não o daquela outra arte que, por relevância económica, investimento e valor-dinheiro, está presa nas malhas do poder financeiro, ou também essa outra que apenas procura ser negócio mas não é ainda valor de mercado, ouro equivalido. Essa, por estranho que pareça, tem os seus subsídios e mecenas, à riqueza privada junta dinheiro público e celebridade recorrente.
Já um outro aspecto, o da memória patrimonial vivificável, a única forma de ser memória e não cemitério, de sermos alguém, é hoje atacado pelos poderes, ou melhor, pela força avassaladora da indiferença e do desprezo que os poderes praticam em pose e estratégia (burra) – criados ricos do Capital - que no fundo entendem que tudo o que é identitário e faça mossa ao paradigma do lucro/criatividade/inovação/engrenharia/financeira/produto
especulativo é necessitado do vazio pleno do nada para afirmar o esplendor das suas novidades exactamente nessa tábua rasa criada – a desmemória -  em que possam ser o astro único de um poder absoluto. A lógica neoliberal é absoluta e única, é fascista a luz que vê ao fundo do seu túnel. O desejo de qualquer discurso de poder que não seja intrinsecamente democrático é esse, o de se tornar exclusivo: um só como ponto de vista, uma só ideia  única, um só país, um só olho aberto – o outro poupa e soma austeridade - visão monocular. Eles estão lá para paternalmente nos indicarem o caminho, em boa verdade como o cego que vai na frente da fila de cegos na pintura de Breughel, o velho.  
Se por um lado se reivindica um direito de cidade que inclua as práticas culturais como expressão da própria cidade e por outro o poder responde sempre a estas questões falando de outras, em que ambiente estamos? Se alguém fala de alhos e o poder responde bugalhos? Se dizemos cultura e eles respondem dívida, se eles dizem dívida e dizem que a cultura é livre, quem são eles?  Só há espaço para o regime de lucro de uns poucos, esse é o regime, lucro/especulativo acrescente-se.
Se o faminto é livre de morrer de fome porque há-de viver? Vivemos certamente numa realidade que perdeu a noção de si mesma, que deslaçou, que se tornou desmembrada e que já nem mesmo pode viver do que as suas próprias contradições vitais anteriores e parlamentarizadas grudassem.
É este hoje o problema: as pessoas, os artistas, as estruturas de criação, os responsáveis institucionais de casas culturais, os mediadores autárquicos encartados, os gestores de micro grupos, os fazedores de coisas, os milhares de jovens artistas saídos de escolas, falam da necessidade de integração e estruturação de um mundo que antes era precário e caminhava num impasse, de esperança mínima, para um modo de estruturação potencial – hoje regressão e descaminho -  como modo de sermos um país de pessoas livres, cidade e portanto de evitar ser selva e predação, criminalidade e corrupção em horizonte, e no outro lado da ponte - quebrada - está o poder que nem sequer os vê, pois apenas vê o que active o poder imenso do escândalo incontrolável. Face a este desencontro, de que falamos quando falamos de cultura, apenas de um lugar institucional? O problema já não está aí e necessita de ser, por assim dizer, extremado, levado a limites, limites equivalentes aos do poder do escândalo, mas políticos.

fernando mora ramos

sábado, 16 de junho de 2012

A indústria dos abismos ou os tsunamis engendrados

Nada é significativo, tudo se relativiza, mesmo o que se poderia evitar racionalmente, por decisão política e governo dos processos, lança-se como um desastre previsto sobre o corpo da maior parte das populações, mais um tsunami de um sistema de tsunamis engendrados pela relação entre os mercados e os governos, reacções aos ataques – é assim que lhes chamam - dos mercados e medidas avulsas, exclusivamente financeiras que, em nome da superação da crise são lançadas e geram os tais danos colaterais – humanos e menos relevantes que os lucros sagrados - da crise, os seus aspectos não especificamente financeiros e justamente relativizados por aqueles decisores que só vêm e jogam números e estatísticas – de que não são parte –, variáveis de uma equação especulativa global dominada pelo poder de lógicas privadas – o que aqui se passa, em boa verdade poderia apelidar-se de indústria do abismo.
O modo como o humano confina com o inumano parece fazer do inumano – o humano apenas variável estatística, indústria light da morte - uma regra aceite, erige o pragmatismo assente na inevitabilidade das relações de poder constituídas, entre colossos, em solução repetidamente mesmista quando é claro que se necessita de uma alteração radical da estrutura das relações de poder. Oh que saudades do muro e da coexistência pacífica dirão alguns.
O que é que não se compara e que o relativismo financista condena à morte em vida, máquina assassina indirecta e directa? O desemprego, a diminuição dos rendimentos do trabalho com a acumulação de lucros de meia dúzia?  Sobre o que é que nem se reflecte e é território tabu, quando se tomam as mesmas medidas que nada resolvem e apenas contribuem para uma maior concentração da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez menor? A riqueza – o poder - cada vez mais concentrada num número menor de criaturas e a pobreza que alastra não são as duas faces de uma mesma moeda? Não se comparam as casas vazias devolvidas aos bancos, as rendas inacessíveis, com as mansões e os condomínios de luxo proliferando com a crise? A paz nas choupanas e guerra aos palácios não está na ordem do dia? O resgate dos bancos feito contra o resgate da desgraça não se compara? A fome e os banquetes não têm ligação óbvia? O salário de uns e o desemprego de outros não é o resultado de um sistema de vasos comunicantes? Querem fazer de nós parvos ou a realidade é imodificável? Mas que prova a história? Não será a queda de uns e a subida de outros, sucessivamente? Onde estão as monarquias hoje a não ser na pura convenção, na fidalguia arruinada e no turismo nobilitado de habitação, a rainha a viver das entradas no palácio e ela própria postal a sépia, memória patrimonial, turismo? 
Foi sempre assim? Foi, mas quem fala? Não foi e mesmo que tivesse sido, haverá necessidade de que continue a ser? É isso a modernidade? Isso mais as autoestradas? O tal progresso? Faltam instrumentos técnicos, científicos, avanços industriais, capacidades agrícolas, ciência médica, escola, consciência dos perigos planetários? O que é que trava a paz e a melhoria generalizada e possível da vida da maior parte?  E quem são eles, a quem este estado de coisas aproveita? São como os outros mas são pessoas de sucesso, são o que os outros, os de baixo, querem ser? O sistema é o processo das ascensões dos famintos e remediados, dos provincianos parvenus agora na capital sempre sonhada, dos proletários e pequeno-burgueses, ontem, burgueses hoje, que viram costas às próprias origens e são ferozmente contra os seus tornando-se cães de fila do capital, seus ideólogos e estipendiados? O mundo é dos novos ricos e dos novos ricos a caminho, saídos ontem lá das berças e com fome ancestral de poder?
O sistema do espectáculo e do consumo destrói a democracia e isso importa? Mas  a democracia não é hoje o seu simulacro? Quantos votam, em nome de quê, quantos se abstêm e quantos estão fora, exteriores a tudo? Quantos votos reais vale um presidente? E um primeiro-ministro? E que maioria é essa que é muito menos de metade da totalidade dos inscritos? O desinteresse não amputa a democracia? E vem de onde? Não virá da qualidade vulgar dos políticos? Quem luta por ideais e não por interesses apenas imediatos?
A escola faz mais licenciados, muitos licenciados com desemprego garantido, e isso é aceite?  A escola produz menos gente competente na língua e a pensar criticamente e isso nada nos diz? A verdade é estatística? A sociologia de bolso, que se diz não ser senso comum, quem serve e a quem serve? É ciência, é crónica de costumes, paleio sociologuês, é o quê e as suas estatísticas e inquéritos apressados o que legitimam? E os economistas vulgares pensam em quê, na saúde dos bancos, no seu salário, na economia de todos, como dizem? E porque raio têm uma total falta de imaginação e cultura aqueles que eles escolhem para opinar televisivamente? São escolhidos a dedo por quem? Só escolhem aqueles que eles sabem que vão dizer o que está previsto e entra na cadeia do que é homogeneizar opinião? O mundo virtual, o poder de criar a virtualidade das coisas e de dar a ler os fenómenos numa dada forma, com receitas que se dominam por se dominarem os poderes de as prescrever no espaço público global – selva virtualizada - e de criar os acontecimentos segundo leis conhecidas, não existe? É tudo o resultado do que é aleatório por desgoverno criado pelo confronto entre mega-poderes globais na chamada aldeia global? Mas qual aldeia global? Quantas aldeias e interiores e populações fora da foto de serviço planetária falsamente integrada existem e não fazem parte? Quantos estarão fora dos mercados e das estatísticas?
E quando se fala de abismo o que o evitará, ou a teoria é a da selecção natural, como entre predadores? Para que serve tanta lei e tanta capacidade repressiva se as máfias se instalam em conúbio com o legisladores e os repressores no poder? E que significa o mau gosto massivo chegar lá acima e erigir a vulgaridade em omnipresença? Quem queimou na Mondadori – era dono recene da editora - as obras completas de Goldoni?
Mas qual Estado de Direito? Qual Constituição? Se a lei prescreve para uns e se aplica a outros em que lei habitamos? Se uns países fazem dos outros seus reféns por via dos juros e dos jogos financeiros que Europa será essa? Se a cultura e a arte são secundarizadas e os paraísos fiscais intocados que decisões se praticam? Se os bancos e os banqueiros vivem a crise sempre por cima quando ao mesmo tempo se resgatam bancos por eles mal governados com dinheiros públicos, quem se condena ao suicídio por não ter salário que chegue?
Os suicídios aumentam na Grécia porquê? O desemprego em Espanha chega quase aos 25% e aí se eterniza porquê? Quem é socialista na verdade e social democrata na verdade? E que comunismo é esse que se satisfaz na retórica e nas formas previstas de protesto ordeiro? E que esquerdas são estas que não fazem uma esquerda alternativa?
E que mal fizeram os países do Sul? São povos de mandriões? Mas isso é critério, sociologia fast food, vulgaridade/ponto de vista? E qual? De onde surge o fascismo? A opinião vulgar o que trama?
O que é facto é que quando as coisas podem ser melhores porque são melhores as respostas técnicas, a consciência cultural e a possibilidade do convívio entre identidades maiores e diferentes, o saber científico prático, tudo recua – quando a outra sociedade surge possível por estarem criadas todas as condições, eis que a tragédia da dívida tudo faz regredir. À beira da possibilidade se erguem de novo as muralhas da inevitabilidade do pior, andamos para trás não dois passos mas décadas. O mundo melhor está aí e foge. Mas que outros responsáveis podem ser os que criaram este estado de coisas que não sejam os poderes reais, de facto, os poderes financeiros especulativos e os seus aliados eleitos nos simulacros de democracia que os servem e que dos seus poderes se servem para si mesmos e para a clique? Quem dirige o mundo são países e povos, eleitos e eleitores, ou a mesma casta apátrida serventuária e cega pelos interesses privados, os mesmos em todo o lado? Não são os poderes, os poderes banqueiros e os mercados financeiros? E não há conúbio entre bancos e governos, não transitam uns de uns cargos para outros como se nada fosse? E isso não se chama sistema? Chegará o ponto da sua implosão ou haverá uma explosão?
O que é facto é que a violência sistémica é criminosa e mais criminosa que os terrorismos e é da mesma natureza cega. As medidas que se tomam para resolver as questões não são escrutinadas pelos europeus, os europeus não existem, são uma flor de estilo – o poder real age assumidamente com servilismo seguindo os ditames dos mercados que nenhuma legitimidade têm para exercer um poder superior ao poder dos eleitos. O colonialismo é parte das relações entre países do mesmo suposto espaço democrático. Vivemos sob protecção e oprimidos. A resistência cultural é essencial, não somos iguais nem somos idênticos, falamos outra língua e temos um outro ritmo. As nossas misturas têm 900 anos quase, somos um pequeno rectângulo espalhado na geografia de muitos mundos. Nenhuma democracia banqueira e financista, simulada, apenas virtual, nos engolirá. Seremos no futuro porventura outros, mas seremos os mesmos se a língua sobreviver. Os alemães, esses, deviam pensar muito bem na sua história recente. A falta de memória não será um mal do Sul. Nunca aceitaremos transformar a nossa casa num campo de concentração. O que é lamentável é que haja esta disponibilidade lacaia a que assistimos e que é capaz de relativizar tudo, mesmo a morte evidente e visível engendrada pela medida e pela falta da medida – claro que o visível é o visível que se invisibiliza ou pelo choque violento que cega, ou pela repetição que torna vulgar e satura, faz esquecer, ou pela substituição incessante pelo novo escândalo que ocupa o espaço do caso protagonista sempre fresco e imediato.
     Se o cinema chega a zero filmes, não será bem assim, diz o governante em porta voz de si mesmo relativizando as coisas, estamos a resolver, se o teatro se extingue, não é bem assim, estamos a resolver, diz o porta voz de si mesmo relativizando as coisas, se o desemprego é grave, não será bem assim, diz o relativizador de serviço, se as estradas perdem metade dos utentes, não será bem assim, somos economistas e pragmáticos, infalíveis, se a realidade sangra não será bem assim, é a realidade que se engana.
Mas quem é esta gente que mente com esta facilidade?
A arte de governar é a de melhor mentir, repetidamente?   

fernando mora ramos

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Castelhanos e dívida

A sandice entrou na normalidade com estes protagonistas governativos. O disparate, de tão assíduo, faz passar a ideia de que é também um efeito da crise e porventura um modo de a combater – à força de disparatar talvez a dívida se espante, qual pássaro e se deslocalize para paragens de crescimento. Esta do Aguiar Branco dizer que a dívida, derrotá-la, é como em tempos fizemos expulsando os castelhanos para reaver a independência, ganha o campeonato dos disparates ao Álvaro e ao Passos, concorrentes diferentes, mas ambos bons na asneira. Do Álvaro são regulares os pontapés na língua e o optimismo ultra, a roçar a asnice, raciocínio silogístico e esquemático, do Passos os excessos paternalistas de tutor do indígena pátrio não vêm melhoras: dois estilos, ou melhor, a falta de um estilo de estadista, nos dois.
 Que estará Aguiar Branco a pensar? Será que o imaginário de um Ministro da Defesa mete sempre castelhanos por razão patriótica? Basta ser da defesa para sonhar com Castela? O advogado brindar-nos-ia com a mesma metáfora plena de profundo significado histórico?
 Não tarda estaremos nos jornais de referência, os vários, a seguir a implementação da táctica do quadrado na resolução do passivo sob forma altamente explicada por diversos inteligentíssimos líderes de opinião encartados. A dívida levantar-se-á, dirão, do alto da sua arrogância especulativa, convocará as suas tropas mercenárias armadas de altas taxas de juros, napalm mais eficaz que a bomba de neutrões, e Aguiar Branco, na pele do Condestável e na mesma Aljubarrota da humilhação a Castela, lanças em riste, esperará pela carga com a certeza de que a mesma formação, revivificada e benzida neste 2012 fatídico, derrotará os apátridas sem rosto que nos querem reduzir à nova escravatura, a da mão-de-obra gratuita e do pé descalço servil diante do turista sempre amado.
 Eles lançam na linha da frente as agências de rating, capazes de ataques sofisticados em rede e convergências várias e nós atiramos-lhes com o que vier à mão, azeite de Moura a ferver e couve galega, aliada de boa hora, o que os fará recuar e procurar segunda investida depois de reagrupada a cavalaria. Nessa hora, a coragem dos nossos peões redobrará pela mola da fé e com ajuda da Virgem eles não terão nenhuma hipótese. Alguns, como rezará a História, borrar-se-ão na cueca de couro com H grande, outros babar-se-ão de medo e amuarão, afrouxando então os cavalos numa verdadeira deserecção solidária com aquele que na sela lhe finca as esporas na ilharga, outros ainda terão a armadura toda enferrujada pelas sequelas lacrimais do medo. Aos que fugidos sem saber para onde a padeira apanhar, já se sabe o que fará, com a vantagem de que hoje o forno é eléctrico e para toneladas de farinha: dará para enfornar mais do que um exército inteiro de cobardes, logística e tecnologia no sítio da pá da padeira, já no Museu da Pátria. Não terão hipótese, a grelha será o destino merecido.
 Em sintonia com Aguiar Branco, nova encarnação de Dom Nuno, todos nós vamos colocar nas janelas das nossas casas bordados com o famosos quadrado da táctica, de modo a inspirar também aqueles que com Branco estarão lá onde o quadrado de formar. Não faltarão voluntários para pôr as forças da Dívida no seu lugar aplicando-lhes de seguida o devido correctivo, isto é, obrigando-os a meter as altas taxas de juro pelos altos cus acima. Viva Portugal!

fernando mora ramos – português de gema

domingo, 27 de maio de 2012

A realidade e o real

Realidade é quando notas a diferença radical entre duas coisas idênticas, paladares diferentes, real é a rota dos impossíveis, o modo como as paredes se erguem intransponíveis e experimentas a dimensão da impotência, o modo como o desejo potencia e é mola, faz chegar até ali e morre na praia e na realidade não adormece, volta e é sempre em pé. Quase morto renasce para o mesmo ciclo e tu voltas lá para de novo caíres, de pé provavelmente mesmo quando te cedem as pernas ou a alma. Intranquilo és agido, agindo contra os profetas do sistema, estipendiados pois claro. A realidade é móvel e nela sujas as mãos do mesmo modo que as lavas, tem a forma da plasticina e moldas as coisas com o suor não do rosto mas das mãos e é aí justamente que o real mostra a face da estrutura e condiciona, estruturas de condicionamento, de formatação diríamos hoje: mede o teu tamanho, põe-te de joelhos dizem-te, ordenam-te, é a voz do grande costume, tem atrás o peso de toda a memória da história da humanidade, memória ordenadora da subalternidade dos muitos, memória do que constitui a voz do dono, não a visão, a constatação em força pragmática, o status quo, mudar para o pior do mesmo: a regra.
 A realidade, apesar de tudo, tu podes pesá-la numa balança antiga, ter a forma de um quilo de pêssegos ainda verdes, sorrir por vezes, como pode ser uma teia de aranha no lugar desprevenido: quem alguma vez suporia que ali pudesse ser uma rota para moscas? Mas é porque em boa verdade não somos omniscientes, ele sim, o real, é omnisciente e movimenta-se como as placas tectónicas. Não temos idade possível para lhe fazer nenhum tipo de companhia, assim como não poderemos viajar ao umbigo do planeta numa sonda apta a resistir ao magma profundo, quem sequer sonha essas incandescências de galáctica dimensão, subterrâneas, nelas tendo entrado?
 Na realidade, por exemplo, quantos exemplos de exemplos serão possíveis, dela, realidade, para exemplificar o real? Tantos quanto as espécies de realidade que não são vítimas de nenhuma extinção ou sobrevivam na memória prospectiva como vida, respiração acordada e aberta. A essas poderemos multiplicá-las pela diversidade de borboletas que continuam a inundar a primavera, extinta mas bem preenchida de rosas minúsculas e grandes, de cardos e alcatruzes, de silêncios prolongados na ponta mais extrema da insónia e de manhãs vibrantes de entrosamento cardíaco como cosmos. Queimarmo-nos e até podemos pôr gelo na entorse ou na ruptura muscular, coisa tão complicada quase como a monogamia, pelo menos para as almas voadoras, isso é um exemplo das versões que a realidade, pele do real, vai compondo neste cumprir um trajecto que é a vida – em auto da alma recente, esta dimensão do trajecto apareceu-me com uma evidência que jamais sentira como que numa fusão entre possibilidade biográfica e opacidade do tempo histórico dentro dele.
 O buraco no passeio não apitou e a urgência do aviso não preveniu a queda porque nas pedras não há ainda alarmes, não têm dono, e não apitam como apitam os carros a voz esganiçada do proprietário à passagem de uma ninfa, por exemplo, que lance mais vento que o previsível sobre o capô – esta palavra sabe a francês demais para ser só brasileira, ela importou o ô, e o português pode no brasileiro, mantendo-se íntimo na expressão, sambar o que o alegre. Aquele sensor está habituado a não notar, esse que não evita que tropeces, ao contrário do outro que é polícia da tua proximidade ao carro do dono e ao dono, pois, sim porque há coisas assim como que uma gota de água a fazer com que o copo perca a paciência e se faça em pedaços infinitos, mas isso nada tem a ver nem com sensores nem com politicamente correctos, nem com propriedade, nem com formas de trato elegantes e outras concordâncias de sujeito com o predicado de terceiros, social nada comum visão do comum livre.
 Quem consegue contar de uma só vez, num único olhar panorâmico para ser claro, com as limitações também da frontalidade abrangente – nunca veremos bem as costas - as migalhas do vidro espalhadas por um chão transparente depois de uma cólera justa? O real é essa transparência que não termina e onde na realidade não sabemos onde fazer parar a possibilidade interminável de dirigir o olhar à velocidade da luz que houver, pois ver na penumbra ou ver na imensidão da luz solar a sua intensidade, são quase opostos e no entanto as mesmas filiações, pois quem a sombra tece é quem a noite traz e quem o dia amanhece, nem deus nem Deus nem deuses nem leis nem a natureza nem o homem, nem as formas preexistentes nem as criadas, nem as mãos que as mãos moldaram mãos manuais, feitas à mão pelo labor da mão – e pela mãe - no trânsito entre a primeira sobrevivência rupestre e esta sobrevivência virtual, milénios entretanto, Cristo e antes dele outras cruzes e núbios, na realidade tão lacustre esta realidade como a outra, basta observar como os gestos dos humanos em situações de salivar ideológico nas montras de hoje, sonhando estatutos e posando-os em imagem de si mesmos à la minute – onde vai o minuto - faz renascer aquilo que no macaco era o pior dos vícios, a mania de se ver aos espelho e de se bronzear enquanto dá murros na peitaça para sacudir adversários ou chuta bolas para contar pelos dedos em tempo infinito o que clama como vitória. Os dedos da masturbação são os mesmos da aritmética e os mesmos da mão dada no Domingo, os mesmos de apontar o dedo a alguém, do mesmo modo e na mesma natureza que faz com que se nasça perto de onde diariamente nos libertamos do que transitoriamente somos e fede, escatologia ou escatolobiologia ou o que quiserem.
 Real é o modo como o fundo do mar resistiu ao genoma do caranguejo por vir, absolutamente inexplicável na sua constante marcha à ré, marcha atrás organizada pelos olhos cegos da carapaça traseira, na realidade absolutamente disponível para a água que ferve com a ponta de sal bem medida: deitar a quantidade de sal necessário numa dada porção de por exemplo sopa é arte manual, masturbação sublimada na couve ou no agrião, colocar o quanto baste de alho e acertar entretanto com o ponto onde o vinho se possa dizer que tem um polegar de altura no copo é artesanato.
 Arte é outra coisa: é do domínio da impossibilidade que se deseja, mistura da vontade com impossibilidade, e feita ali, onde de repente se erguem as vozes interiores que ordenam o real falando de dentro – fluindo por entre químicas, nada mais físico que a ficção - como um rio interior cujo destino é a fronteira da consciência, conspurcada de multiplicidades o que baste, sujo de mãos sujas que ajuda à mestria do real pelos limites da experiência, currículo vejam bem, a realidade, em suma, dentro de ti e fora de ti, nas olheiras e no cabelo a quebrar, na mola do desejo também e na solidão aplicada da concentração ao deambular das frases na geografia do texto, porto de destino e de partida, porto e exterior, o teu lá fora.
 Fazendo-a falar, insinuando enérgica a forma do desenho a vir, eis a ficção – a quem poderás solicitar uma palavra de luz senão aos que escreves porque os tens na memória e pulsar cardíaco? E como estão longe mas apesar disso voltam a falar porque dizem coisas diferentes daquelas que na última vez retiveste do mesmo fragmento, pois retemos fragmentos e saltamos entre eles, pulsares de sentido que se desvanesce e vivifica de novo.
 Como poderás tu dizer que é assim ou assado quando todas as formas da ficção são o resultado do desequilíbrio entre as narrativas que se impõem vindas do nada interior que alimentas – e como fazê-lo sem esse vazio cuja estratégia de parto estará na tua arte da recorrência, voltar ao pousio, descanso que prevê semeadura? E como aquilo que é construído no sentido da estruturação vazado num tempo e num destino mais imediato toca a outros porque exactamente tem uma dada estrutura, mais aberta, mais livre, montagem, ordenação sem cronologia mas lógica?
 Quem serão vocês que sentem a leitura como uma excitação, um perigo, pois mata, mata de excesso de vício e obsessão, desliga do comum, desnormaliza, para ligar a outra realidade, essa onírica, real subterrâneo, fluxo, tutano, medula e nervo, química do desejo e sílaba fazendo-se palavra e frase? Receio e compreensão, excitação e acelerações, intensidade e pausa, paragem, suspensão, eis o corpo no corpo da ficção identificável, e resultado menos imediato de ler da ficção, projectado no tempo porque interior e portanto não medido, tempo da psique e não da psicologia, nada brique-à-braque institucional ou tragicómico, quase química a organizar-se em órgão vitais, química interior. A ficção é de um órgão vital a secreção limpa plena das sujidades produzida na realidade - sabendo entretanto que isso, esse gesto de ficcionar comprometido com a vida, está para além de todas as contingências, pois quem te impõe que vivas dentro de ti a tua própria viagem contra o que possas sonhar, mesmo que não explicites e digas, pois tens a liberdade de estar calado ou de dizer, como queiras? Podes mesmo gritar, podendo o grito sinalizar-te como alvo de insídia e mesmo de ajuste de contas, inveja pacóvia sempre a apequenar os que fomos navegando em outras paragens, a nossa sorte identitária misturada, mesmo que memória, pois é o estrume do que possa vir e da propulsão necessária para partir de novo, paragens físicas ou culturais, outras cartografias.
 Claro aí é o facto de não poderes de facto fazer essa viagem se ela se fizer claramente contra a estruturação dominante – quantas são as paredes do real, quantas têm videovigilância e microfone denunciante, quantas delas são justamente a solidez do que é antagónico estatuído paz podre e cimentado na longa ou média duração? E de onde sai esta nossa realidade, da idade dos partidos, da República, de onde vem ela e o que será a última data significativa senão uma data precária?
 Mesmo que se exerça por vezes através de alegorias e parábolas, simbólicas enigmáticas e desvios, comparações produtivas, coisa que por vezes pode passar na malha apertada dos que governam a realidade, esses cães de fila que são a realidade mesquinha do exercício da propriedade ao serviço do real, como passar a palavra para além do que ela em ti possa viajar para viajar nos outros e para que viajes neles e a viajem se faça comum, talvez mesmo país?
 Mais estranho que tudo isto é pensar que real e real são a mesma palavra monárquica e que realeza e a realidade, nada têm de comum.

 fernando mora ramos