domingo, 27 de maio de 2012

A realidade e o real

Realidade é quando notas a diferença radical entre duas coisas idênticas, paladares diferentes, real é a rota dos impossíveis, o modo como as paredes se erguem intransponíveis e experimentas a dimensão da impotência, o modo como o desejo potencia e é mola, faz chegar até ali e morre na praia e na realidade não adormece, volta e é sempre em pé. Quase morto renasce para o mesmo ciclo e tu voltas lá para de novo caíres, de pé provavelmente mesmo quando te cedem as pernas ou a alma. Intranquilo és agido, agindo contra os profetas do sistema, estipendiados pois claro. A realidade é móvel e nela sujas as mãos do mesmo modo que as lavas, tem a forma da plasticina e moldas as coisas com o suor não do rosto mas das mãos e é aí justamente que o real mostra a face da estrutura e condiciona, estruturas de condicionamento, de formatação diríamos hoje: mede o teu tamanho, põe-te de joelhos dizem-te, ordenam-te, é a voz do grande costume, tem atrás o peso de toda a memória da história da humanidade, memória ordenadora da subalternidade dos muitos, memória do que constitui a voz do dono, não a visão, a constatação em força pragmática, o status quo, mudar para o pior do mesmo: a regra.
 A realidade, apesar de tudo, tu podes pesá-la numa balança antiga, ter a forma de um quilo de pêssegos ainda verdes, sorrir por vezes, como pode ser uma teia de aranha no lugar desprevenido: quem alguma vez suporia que ali pudesse ser uma rota para moscas? Mas é porque em boa verdade não somos omniscientes, ele sim, o real, é omnisciente e movimenta-se como as placas tectónicas. Não temos idade possível para lhe fazer nenhum tipo de companhia, assim como não poderemos viajar ao umbigo do planeta numa sonda apta a resistir ao magma profundo, quem sequer sonha essas incandescências de galáctica dimensão, subterrâneas, nelas tendo entrado?
 Na realidade, por exemplo, quantos exemplos de exemplos serão possíveis, dela, realidade, para exemplificar o real? Tantos quanto as espécies de realidade que não são vítimas de nenhuma extinção ou sobrevivam na memória prospectiva como vida, respiração acordada e aberta. A essas poderemos multiplicá-las pela diversidade de borboletas que continuam a inundar a primavera, extinta mas bem preenchida de rosas minúsculas e grandes, de cardos e alcatruzes, de silêncios prolongados na ponta mais extrema da insónia e de manhãs vibrantes de entrosamento cardíaco como cosmos. Queimarmo-nos e até podemos pôr gelo na entorse ou na ruptura muscular, coisa tão complicada quase como a monogamia, pelo menos para as almas voadoras, isso é um exemplo das versões que a realidade, pele do real, vai compondo neste cumprir um trajecto que é a vida – em auto da alma recente, esta dimensão do trajecto apareceu-me com uma evidência que jamais sentira como que numa fusão entre possibilidade biográfica e opacidade do tempo histórico dentro dele.
 O buraco no passeio não apitou e a urgência do aviso não preveniu a queda porque nas pedras não há ainda alarmes, não têm dono, e não apitam como apitam os carros a voz esganiçada do proprietário à passagem de uma ninfa, por exemplo, que lance mais vento que o previsível sobre o capô – esta palavra sabe a francês demais para ser só brasileira, ela importou o ô, e o português pode no brasileiro, mantendo-se íntimo na expressão, sambar o que o alegre. Aquele sensor está habituado a não notar, esse que não evita que tropeces, ao contrário do outro que é polícia da tua proximidade ao carro do dono e ao dono, pois, sim porque há coisas assim como que uma gota de água a fazer com que o copo perca a paciência e se faça em pedaços infinitos, mas isso nada tem a ver nem com sensores nem com politicamente correctos, nem com propriedade, nem com formas de trato elegantes e outras concordâncias de sujeito com o predicado de terceiros, social nada comum visão do comum livre.
 Quem consegue contar de uma só vez, num único olhar panorâmico para ser claro, com as limitações também da frontalidade abrangente – nunca veremos bem as costas - as migalhas do vidro espalhadas por um chão transparente depois de uma cólera justa? O real é essa transparência que não termina e onde na realidade não sabemos onde fazer parar a possibilidade interminável de dirigir o olhar à velocidade da luz que houver, pois ver na penumbra ou ver na imensidão da luz solar a sua intensidade, são quase opostos e no entanto as mesmas filiações, pois quem a sombra tece é quem a noite traz e quem o dia amanhece, nem deus nem Deus nem deuses nem leis nem a natureza nem o homem, nem as formas preexistentes nem as criadas, nem as mãos que as mãos moldaram mãos manuais, feitas à mão pelo labor da mão – e pela mãe - no trânsito entre a primeira sobrevivência rupestre e esta sobrevivência virtual, milénios entretanto, Cristo e antes dele outras cruzes e núbios, na realidade tão lacustre esta realidade como a outra, basta observar como os gestos dos humanos em situações de salivar ideológico nas montras de hoje, sonhando estatutos e posando-os em imagem de si mesmos à la minute – onde vai o minuto - faz renascer aquilo que no macaco era o pior dos vícios, a mania de se ver aos espelho e de se bronzear enquanto dá murros na peitaça para sacudir adversários ou chuta bolas para contar pelos dedos em tempo infinito o que clama como vitória. Os dedos da masturbação são os mesmos da aritmética e os mesmos da mão dada no Domingo, os mesmos de apontar o dedo a alguém, do mesmo modo e na mesma natureza que faz com que se nasça perto de onde diariamente nos libertamos do que transitoriamente somos e fede, escatologia ou escatolobiologia ou o que quiserem.
 Real é o modo como o fundo do mar resistiu ao genoma do caranguejo por vir, absolutamente inexplicável na sua constante marcha à ré, marcha atrás organizada pelos olhos cegos da carapaça traseira, na realidade absolutamente disponível para a água que ferve com a ponta de sal bem medida: deitar a quantidade de sal necessário numa dada porção de por exemplo sopa é arte manual, masturbação sublimada na couve ou no agrião, colocar o quanto baste de alho e acertar entretanto com o ponto onde o vinho se possa dizer que tem um polegar de altura no copo é artesanato.
 Arte é outra coisa: é do domínio da impossibilidade que se deseja, mistura da vontade com impossibilidade, e feita ali, onde de repente se erguem as vozes interiores que ordenam o real falando de dentro – fluindo por entre químicas, nada mais físico que a ficção - como um rio interior cujo destino é a fronteira da consciência, conspurcada de multiplicidades o que baste, sujo de mãos sujas que ajuda à mestria do real pelos limites da experiência, currículo vejam bem, a realidade, em suma, dentro de ti e fora de ti, nas olheiras e no cabelo a quebrar, na mola do desejo também e na solidão aplicada da concentração ao deambular das frases na geografia do texto, porto de destino e de partida, porto e exterior, o teu lá fora.
 Fazendo-a falar, insinuando enérgica a forma do desenho a vir, eis a ficção – a quem poderás solicitar uma palavra de luz senão aos que escreves porque os tens na memória e pulsar cardíaco? E como estão longe mas apesar disso voltam a falar porque dizem coisas diferentes daquelas que na última vez retiveste do mesmo fragmento, pois retemos fragmentos e saltamos entre eles, pulsares de sentido que se desvanesce e vivifica de novo.
 Como poderás tu dizer que é assim ou assado quando todas as formas da ficção são o resultado do desequilíbrio entre as narrativas que se impõem vindas do nada interior que alimentas – e como fazê-lo sem esse vazio cuja estratégia de parto estará na tua arte da recorrência, voltar ao pousio, descanso que prevê semeadura? E como aquilo que é construído no sentido da estruturação vazado num tempo e num destino mais imediato toca a outros porque exactamente tem uma dada estrutura, mais aberta, mais livre, montagem, ordenação sem cronologia mas lógica?
 Quem serão vocês que sentem a leitura como uma excitação, um perigo, pois mata, mata de excesso de vício e obsessão, desliga do comum, desnormaliza, para ligar a outra realidade, essa onírica, real subterrâneo, fluxo, tutano, medula e nervo, química do desejo e sílaba fazendo-se palavra e frase? Receio e compreensão, excitação e acelerações, intensidade e pausa, paragem, suspensão, eis o corpo no corpo da ficção identificável, e resultado menos imediato de ler da ficção, projectado no tempo porque interior e portanto não medido, tempo da psique e não da psicologia, nada brique-à-braque institucional ou tragicómico, quase química a organizar-se em órgão vitais, química interior. A ficção é de um órgão vital a secreção limpa plena das sujidades produzida na realidade - sabendo entretanto que isso, esse gesto de ficcionar comprometido com a vida, está para além de todas as contingências, pois quem te impõe que vivas dentro de ti a tua própria viagem contra o que possas sonhar, mesmo que não explicites e digas, pois tens a liberdade de estar calado ou de dizer, como queiras? Podes mesmo gritar, podendo o grito sinalizar-te como alvo de insídia e mesmo de ajuste de contas, inveja pacóvia sempre a apequenar os que fomos navegando em outras paragens, a nossa sorte identitária misturada, mesmo que memória, pois é o estrume do que possa vir e da propulsão necessária para partir de novo, paragens físicas ou culturais, outras cartografias.
 Claro aí é o facto de não poderes de facto fazer essa viagem se ela se fizer claramente contra a estruturação dominante – quantas são as paredes do real, quantas têm videovigilância e microfone denunciante, quantas delas são justamente a solidez do que é antagónico estatuído paz podre e cimentado na longa ou média duração? E de onde sai esta nossa realidade, da idade dos partidos, da República, de onde vem ela e o que será a última data significativa senão uma data precária?
 Mesmo que se exerça por vezes através de alegorias e parábolas, simbólicas enigmáticas e desvios, comparações produtivas, coisa que por vezes pode passar na malha apertada dos que governam a realidade, esses cães de fila que são a realidade mesquinha do exercício da propriedade ao serviço do real, como passar a palavra para além do que ela em ti possa viajar para viajar nos outros e para que viajes neles e a viajem se faça comum, talvez mesmo país?
 Mais estranho que tudo isto é pensar que real e real são a mesma palavra monárquica e que realeza e a realidade, nada têm de comum.

 fernando mora ramos

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