sábado, 26 de maio de 2012

O músico e a mãe

Saltar com a mãe pela mão, ele, aos sessenta, músico e desempregado e ela com 90 e alzheimer desde há três, quatro anos, é algo que ninguém pode nem imaginar e é aterrador, um soco na passividade induzida que nos tem presos nos mecanismos da presença fictícia, porque afirma uma opção pela morte, que, no caso, como ele disse, o músico António Perris, na mensagem que deixou, se assume em desespero de causa e solução derradeira. António escreveu uma última mensagem em que dizia não estar em condições de alimentar a mãe nem a si mesmo, disse-o assim com esta crueza depois de um grito por auxílio postado na net que terminava com uma pergunta dirigida a todos nós sobre o sofrimento de ambos: alguém conhece uma solução? À senhora tinham feito cortes na pensão e de 600 euros passara a ter 340, nenhum lar a aceitava, esboçava-se também uma esquizofrenia, ele estava sem emprego há dois anos. As portas fecharam-se todas. Como podermos explicar uma inevitabilidade assim produzida, construída pela indiferença de tudo o que os cercava, dos vizinhos de prédio às leis selvagens impostas do exterior que vêm suspender no seio dos gregos – e entre nós - a possibilidade de um vida digna, imperativo coincidente com o que poderemos chamar de mínimos democráticos e vitais? A democracia e a vida têm rotas que não coincidem? Onde está o erro clamoroso, o crime inscrito no corpo do sistema? A democracia não é liberdade selvagem imposta pelos mercados, é antes de tudo a dignidade das condições de vida de todos, antes do mais a alimentação, o que aliás a natureza resolve aos que nascem e depois, pelo que vemos, a sociedade nega a muitos. Neste caso a liberdade de pedir auxílio, a dimensão pública do gesto, caiu no saco roto da forma desta “democracia” que não se dota de respostas instituídas para situações de urgência e limites, nenhum mecanismo público reagiu, nenhuma forma de solidariedade cívica agiu, nenhuma fraternidade se exerceu, nenhum internacionalismo foi visto. A degradação dos vínculos comunitários na realidade das relações está a atingir graus de indiferença absurdos, a criar mesmo, pelo desnorte sádico de muitas ideologias que se julgavam extintas, isto é, “residualizadas”, o desejo de uma espécie de catástrofe que venha repor um novo equilíbrio demográfico e uma nova partilha dos depauperados recursos naturais da terra – não julguem que não é assim, ele há paraísos artificiais a surgir nos mais diversos condomínios privados.
O que explica este empurrão que os proprietários e gestores da crise, navegando à vista a instabilidade jogada de roleta dependente dos humores de casino da bolsa e dos lucros especulativos do dia, frescos ainda, deram a este duo infeliz?
O que não é imaginável como possível aconteceu, na Grécia, país que na invenção da tragédia clássica fez entrar o mundo dos mitos na racionalidade de uma idade dos poderes que esboçava os primeiros passos esta violência autoinfligida e gesto dirigido a todos, aconteceu há dias - berço da democracia, diz-se, muitas vezes sem a consciência de que entre a invenção da igualdade, as leis que a afirmam e uma política de equilíbrio entre as diferenças vitais de estruturação de um todo social (homogeneidade de heterogeneidades) e de acesso dos que não têm ao comum que a possibilite, à igualdade, é obra de séculos, pois nada mais claro que os poderes fácticos construírem e praticarem assiduamente, em nome da democracia desde que é “a referência” da política planetária, a destruição da democracia e da possibilidade do seu aprofundamento como uma constante histórica, levando a sociedade desigual aos extremos do que possa ser, mostrando-se com isso que mesmo sob as imposições éticas dos consensos para inglês ver – o pagode - vertidos nas leis, a lei nada vale para quem em nome dela exerce a força contra o que prescreve e diz, com a contribuição servil de todos os que nessas áreas têm emprego rendível e exercem funções sistémicas e para-sistémicas.
A tragédia de Perris e da mãe nem sequer teve o impacto da morte de Dimitris Christoulas na Praça Syntagma, foi um adeus de desespero, um voo terrivelmente angustiado de um quinto andar para o chão. E a austeridade vai continuar a fazer as suas vítimas diárias. Dentro de uns anos o balanço e os julgamentos e os tribunais vão decretar que foi crime, que os seus autores mereceriam a prisão, que há crimes que só o tempo torna visíveis e tudo terá passado – o modo como os crimes prescrevem é sinal de como injustiça é a actualidade e a justiça, uma mera projecção no tempo, um idealismo prospectivo. Chocante é voltar a entrar-me nos ouvidos, sem o querer, a frase que disse o Primeiro-ministro sobre o desemprego. Já nada nos pode consolar. Sair desta situação implica de facto algo novo, algo que por dentro do sistema não é possível.
Repousem em paz António e mãe do António, os Perris, suponho. Trezentos euros é o nome da vossa viagem e o bolso atento, mesquinho e cúmplice de homicídio do Estado. Vejamos o que vem daí, da Grécia, num tempo muito próximo e com um sentido de futuro humanizado.
fernando mora ramos

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