domingo, 13 de maio de 2012

O espectro dos mercados

Encontrei o tipo num lugar ermo, numa paisagem de betão, de joelhos, a falar para as nuvens e gesticulando como os macacos quando se zangam. As nuvens passavam naquele ritmo elefante, colossos pairando sobre as cabeças e o chão sedento, seca que já deu procissões e fé entoada na ciência de Deus. A crise é convergência de factores e a dívida soberana, no ecrã único, faz esquecer as bem mais fundas e que há muito assinalam que este modelo de desenvolvimento assente na ideia de progresso – imparável tecnologia sem avanço da humanidade – é suicidário. Tragédias reconhecidas como o aumento do nível das mares – ainda agora um pequeno país tenta comprar território, ou alugar, para sobreviver –, a natalidade sem medida, ou a corrupção generalizada das chamadas democracias, a desflorestação amazónica ou os conflitos raciais artificiais mantidos pelo acicatar construído de forças terroristas de Estado e fora dele, o nuclear e a utilização ainda sem fim à vista dos combustíveis fósseis que trazem o efeito de estufa, são questões que a humanidade, o governo mundial, deveria enfrentar para preservar a própria existência e salvar o planeta e os seus habitantes de uma morte agónica já que a morte é certa – uma eutanásia planetária não é mal pensado. Mas a bestialidade humana é tal que nem a sobrevivência do planeta e da humanidade são consenso possível. Ao interesse planetário sobrepõem-se mesquinhos interesses imperiais de nações e recentemente o poder obscuro de forças especuladoras, de empresas gigantes multinacionais, que dominam os chamados mercados e que dominam esta economia baseada no crédito.
O tipo que tinha diante de mim ajoelhado parecia-me fabricar com gestos uns sinais de fumo, isso tanto quanto eu sei de sinais de fumo, pouco mais do que vi em coboiadas e dançava cego oferecendo o corpo ao céu num ritual enigmático. Tentei falar-lhe mas ele em transe estava mudo, possuído por uma força que a sua energia ritual convocara, como de outra forma se faz com uma mesa pé-de-galo, de mãos dadas e muita força interior coral. O tipo nem me via e continuava. Agora parecia esfaquear carneiros e num altar imaginário, numa espécie de pantomima – correcta, limpa de sangue – parecia ler-lhes estômago e vísceras, para logo a seguir entoar cantos que pareciam, pela ondulação harmónica, simular o voo das aves, como se sabe modo de ler o futuro – ele há passarões a viver disso. Tirei uma conclusão: o tipo faz um apelo, fala com o invisível, tenta impedir que o futuro caia sobre nós como o dilúvio, ou outras destruições do mesmo calibre, um incêndio global, o descontrole da translação e rotação da terra, que sei. Mas a criatura não descia do seu estado alucinado ao meu, pés na terra, vítima indesejada da gravidade já que sonho, desde menino, com voar, asas de verbo, voo barato com palavras e para o qual basta um lápis, uma caneta ou um teclado.
A criatura começara agora a soletrar palavras inexistentes, sons inaudíveis e outros que pareciam de uma língua de consoantes. BRGRTRWQQQQBBBBTTTT, absolutamente indecifrável e até um pouco agressivo. A consoante dá um coice que a vogal não atinge. Mas que raio de lengalenga. Será uma performance? Mas ali, naquele fim do mundo de betão sem habitante à vista, terra de ninguém, nada mediático? Já se viu algum performativo que não seja mediático-dependente, para-televisivo, narciso maníaco, exibicionista e adepto do simplório armado em complexo? Filhos do sensacionalismo não? Esse é o seu estrume sociopata não? E continuei ali, esperando que o indivíduo voltasse a si, já preso ao enigma do seu ritual. Seria arte? E de repente lembrei-me que a melhor maneira de afastar dois cães era atirar-lhes um balde de água fria. Quando vou para, o indivíduo ergue as mãos ao além e diz com uma voz técnica: estou a acalmar os mercados, os mercados necessitam de ser acalmados. E subindo um altar improvisado diz: Oh deuses especuladores, oh Deus mercado, tem piedade de nós que cometemos o crime da dívida e perdoa-nos, tudo pagaremos com libações de ouro negro e escalando os píncaros de juros que sobre nós atiras. E jurava que dentro em breve acabaria com o pecado do salário e se disporia à escravatura ou à servidão da gleba, como quisessem os deuses mercados, mas que acalmassem por favor e não ligassem ao que o Dr. Soares acabava de dizer.
fernando mora ramos

Sem comentários:

Enviar um comentário