sexta-feira, 22 de junho de 2012

A questão cultural

O mais estranho disto que se chama cultura e tem uma sociedade própria, é a “harmonia” esquizofrénica da sua expressão pública, a vida paralela dos discursos e sua penetração precária na acção cívica criativa e na vida institucional, na margem e no centro, off e in dir-se-ia na síntese lapidar e anglófila conveniente, já que hoje qualquer acção de relevo cultural é excepcional, Festival ou Capital, excepção e por consequência rasgo de luz que ilumina fugaz mas não faz luz sobre nada, período de concentração e intensidade da fruição – e da acção artística múltipla e “feirante” – discurso pleno e obcecado pelas formas espectaculares da sua visibilidade, mais publicitárias ou mais mundanas, o desfile dos objectos artísticos condenando cada objecto à hierarquizada pertença a uma sequência horizontal caminhando na superfície de um tempo veloz, de expressão efémera/descartável e não ao enraizar da sua possibilidade e potencialidades específicas de entrosamento no quotidiano ilimitado dos diversos corpos sociais, objectos fruídos convertidos em instrumentos já interiores do exercício da percepção do mundo e das leituras do real, espectadores já públicos, escolas já cidade, classes etárias diferenciadas pelas boas razões das suas especificidades, problemáticas politizadas a circular entre os corpos da sociedade, a sociedade a poder de facto observar-se nos espelhos fragmentários que possam expressar e dar espessura às imagens que os criadores sejam capazes de construir com a sua intuição inteligente, o seu talento e treino, o seu domínio da língua e das linguagens – este é o problema de fundo, o da natureza política da arte que não é nem amestrada nem decorativa, discurso comprometido com a verdade dos factos, autenticidade da ficção e não o daquela outra arte que, por relevância económica, investimento e valor-dinheiro, está presa nas malhas do poder financeiro, ou também essa outra que apenas procura ser negócio mas não é ainda valor de mercado, ouro equivalido. Essa, por estranho que pareça, tem os seus subsídios e mecenas, à riqueza privada junta dinheiro público e celebridade recorrente.
Já um outro aspecto, o da memória patrimonial vivificável, a única forma de ser memória e não cemitério, de sermos alguém, é hoje atacado pelos poderes, ou melhor, pela força avassaladora da indiferença e do desprezo que os poderes praticam em pose e estratégia (burra) – criados ricos do Capital - que no fundo entendem que tudo o que é identitário e faça mossa ao paradigma do lucro/criatividade/inovação/engrenharia/financeira/produto
especulativo é necessitado do vazio pleno do nada para afirmar o esplendor das suas novidades exactamente nessa tábua rasa criada – a desmemória -  em que possam ser o astro único de um poder absoluto. A lógica neoliberal é absoluta e única, é fascista a luz que vê ao fundo do seu túnel. O desejo de qualquer discurso de poder que não seja intrinsecamente democrático é esse, o de se tornar exclusivo: um só como ponto de vista, uma só ideia  única, um só país, um só olho aberto – o outro poupa e soma austeridade - visão monocular. Eles estão lá para paternalmente nos indicarem o caminho, em boa verdade como o cego que vai na frente da fila de cegos na pintura de Breughel, o velho.  
Se por um lado se reivindica um direito de cidade que inclua as práticas culturais como expressão da própria cidade e por outro o poder responde sempre a estas questões falando de outras, em que ambiente estamos? Se alguém fala de alhos e o poder responde bugalhos? Se dizemos cultura e eles respondem dívida, se eles dizem dívida e dizem que a cultura é livre, quem são eles?  Só há espaço para o regime de lucro de uns poucos, esse é o regime, lucro/especulativo acrescente-se.
Se o faminto é livre de morrer de fome porque há-de viver? Vivemos certamente numa realidade que perdeu a noção de si mesma, que deslaçou, que se tornou desmembrada e que já nem mesmo pode viver do que as suas próprias contradições vitais anteriores e parlamentarizadas grudassem.
É este hoje o problema: as pessoas, os artistas, as estruturas de criação, os responsáveis institucionais de casas culturais, os mediadores autárquicos encartados, os gestores de micro grupos, os fazedores de coisas, os milhares de jovens artistas saídos de escolas, falam da necessidade de integração e estruturação de um mundo que antes era precário e caminhava num impasse, de esperança mínima, para um modo de estruturação potencial – hoje regressão e descaminho -  como modo de sermos um país de pessoas livres, cidade e portanto de evitar ser selva e predação, criminalidade e corrupção em horizonte, e no outro lado da ponte - quebrada - está o poder que nem sequer os vê, pois apenas vê o que active o poder imenso do escândalo incontrolável. Face a este desencontro, de que falamos quando falamos de cultura, apenas de um lugar institucional? O problema já não está aí e necessita de ser, por assim dizer, extremado, levado a limites, limites equivalentes aos do poder do escândalo, mas políticos.

fernando mora ramos

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